domingo, 26 de julho de 2009

Os Jacintos Queimados


Em Alexandra, há mais de dez anos que os homens procuram o livro desaparecido no dia em que o barbeiro se enforcou. Entretanto, murmuram as histórias que dele ouviram contar, pois acreditam que, na hora em que as esquecerem, o sol se voltará a esconder e não se distinguirá a noite do dia. Todos, no primeiro domingo de Junho, à porta das sete mulheres desaparecidas, cortam os jacintos rente ao chão e queimam-nos no meio da praça em quieto silêncio. Dizem que o fazem porque assim tem de ser.


Há muitos que ainda recordam o aroma dos jacintos que tão cedo chegou nesse dia: o vale parecia caído num gigantesco caldeirão onde fervilhava a inebriante essência; todos levantavam o rosto para o céu, dilatavam as narinas e tentavam descortinar o ponto cardeal onde nascia o insinuante vapor. Não demorou muito que todos concluíssem vir de oeste a leve brisa, com certeza descendo a montanha e atravessando o Pinhal Grande.
Por volta das dez, um tal António teria encontrado o barbeiro com inédita boa disposição matinal, tendo-lhe presenciado um sorriso largo enquanto lhe ensaboava o rosto e olhares parados na rua onde àquela hora não passava ninguém. A maior surpresa aconteceria, acreditassem ou não, quando o barbeiro começou a falar, não do tempo ou das notícias da bola, o que já por si seria coisa rara, mas a contar o que só ao fim da primeira dúzia de frases o tal António percebeu tratar-se de história inventada. Desfeita a barba e lavada a cara, ainda sobreveio a pergunta se de tal história o barbeado tinha gostado, e ele, entre o pasmo e a pressa de aquela coisa inaudita vir contar, disse que sim com a cabeça, mas a verdade é que nada percebera, e, como todos concordaram, não se gosta do que não se entende. O barbeiro João da Silva dera em doido foi o que ficou a saber-se no café Central, e a verdade é que a dita loucura acabaria por ser comprovada ainda antes do almoço pelos dois ouvintes ao balcão, apressados a tratar dos pêlos ainda imberbes do rosto, não fosse ela coisa passageira e por isso indigna de ser espalhada aos quatro ventos. Mas era verdade a loucura do homem, pois ele em tudo repetiu a receita dada ao António, acrescentando um brilho nos olhos quando fazia os tais silêncios com o olhar parado no meio da rua.


A mulher foi vista pela primeira vez ainda antes do meio-dia, segundo afirmaria a mulher do coveiro। Ajudava ela o marido no corte de ervas à volta das campas, levantava a cabeça para limpar o suor da testa no instante em que o sino dava o sinal das onze e trinta e foi então que viu o vulto que se aproximava pelo caminho do Pinhal Grande. Ainda o sino não se calara e já uma coisa dentro dela lhe segredava ser de mau prenúncio aquela figura, duvidou até se não seria falsa aquela hora, mas somente o sino a anunciar a chegada de um estranho à terra, e por isso gritou ao marido que lhe dissesse as horas e a prova provada da certeza do seu prenúncio foi o seu homem que nunca lhe mentiu ter respondido, depois de pousar a enxada e tirar o relógio do bolso, que ainda não era meio dia.Vestia de negro e assim vestiria todos os dias em que foi dada como viva, da mesma cor da noite escura eram os seus cabelos compridos, todos lhe reparavam na forma como caminhava e que antes parecia um deslizar, como se de gelo fosse o chão que pisava e não de terra fervente, porque eram de Verão escaldante aqueles dias; da cor alva era a pele do rosto e dos finos dedos das mãos; com certeza mulher de fidalgo, afirmou-se em frente ao café; de onde seria e ao que viria se outra coisa não fez nesse dia que andar rua abaixo e rua acima, não se detendo em lado nenhum e nada tendo perguntado, até deixar de ser vista pela hora do crepúsculo, desaparecida ela e o livro que trazia numa das mãos e ninguém tinha visto abrir. E a cor dos olhos, que cor era aquela que nunca se tinham visto olhos assim, a pergunta repetida à hora da ceia, verdes da cor da erva nas primeiras manhãs de Abril, ou da cor do musgo gelado nas manhãs de Dezembro, e então uma criança, não se lembrando onde ouvira ou lera a palavra, mas com a certeza de ser a palavra pedida, disse olhos garços. E assim ficou esse dia, o chegada de uma mulher de olhos assim e da certa loucura do barbeiro, que ainda foi visto já noite alta, vagueando pelas ruas com o tal brilho nos olhos.

(...)

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