domingo, 26 de julho de 2009

O Súbito Frio da Tarde


Nunca esperei que isto me acontecesse. Muito menos desta maneira, tão rápida e cruel. Choca-me, deixem que lhes diga, a falta de maneiras do monstro que me pôs neste estado. Bem vinda ao maravilhoso mundo dos homens, dirão alguns.
Se bem me lembro (a minha memória enfraquece a cada instante que passa, na medida exacta em que este sangue pegajoso se espalha pelo meu corpo imaculado) fui comprada na manhã de ontem, na altura dos bons clientes, como sempre ouvi da boca das empregadas da loja: nessa hora em que ainda resistem os aromas frescos aos detergentes, o silêncio não tem que lutar contra os gritos das crianças e os corpos ainda exalam os perfumes cristalinos do primeiro banho. A pele do homem tinha o aroma dos sabonetes baratos, era possuída de uma rigidez de cobre e transpirava o hábito de se expor ao vento e às intempéries. Senti primeiro um certo desconforto, depois fiquei nervosa, desejei que me achasse demasiado cara para a sua (com certeza) magra carteira, e, por fim (não me perguntem porquê), e para mal dos meus pecados, dei por mim a ajustar-me ao seu corpo com todo o saber que acumulei durante tantos meses de espera. Abracei-o como o faria a mulher dos seus sonhos, e, sem falso orgulho, atrevo-me a dizer, emprestei-lhe a elegância que claramente não tinha quando entrou na loja. Espanto o meu quando me deixou aberta na medida exacta enquanto sorria para o espelho, e leviandade a minha de me ter nesse instante afeiçoado ao seu corpo, suspirando pela longa e feliz vida que me esperava. Não me devo enganar se disser que me salpicou uma inusitada ansiedade quando ele me despiu e entregou à empregada. Posso jurar por todos os bichos-da-seda que cheguei a desesperar durante a tarde em que me deixou abandonada na caixa de cartão e durante a noite em que me deixou estendida (coisa que fez com cuidado, é verdade) em cima de um velho sofá. Aos primeiros raios da manhã esqueci essa afronta e ofereci-lhe o meu brilho cristalino. O preço dessa vaidade é o estado em que me encontro.
O dia ainda mal nascera quando me vestiu de novo (juro que rejubilei quando senti o seu corpo transpirar uma alegria contida), aceitei, despreocupada, o acento do casaco sobre mim, reparei que o meu senhor se benzia ao sair do quarto e minutos depois rodávamos contentes pela auto-estrada.
Não sei durante quanto tempo viajámos। Tenho imagens fugazes de uma estrada que se foi tornando cada vez mais estreita e sinuosa e de a planície se transformar em montanhas temerosas. Recordo o sol branco e a impressão desagradável do suor a inundar-me e a surpreendente frescura da sombra onde parámos. Da casa minúscula saiu uma velha mulher, que após meia dúzia de passos se deteve, ofegante. Lembro com algum desgosto o abraço longo a que se entregaram (fui completamente amassada contra aquele corpo flácido que cheirava a coisas que nunca conheci e me deixou uma nódoa de gordura ao lado do terceiro botão), lembro os olhos húmidos da mulher, o bater acelerado do coração do meu senhor (a quem ela chamou com voz débil Meu Filho). Instantes depois ouvi pela primeira vez o seu nome, António. Entrámos na pequena sala que me pareceu ter sido limpa e arranjada nessa manhã, sentámo-nos à mesa coberta com uma toalha de linho puro e temi pela minha vida (que ingenuidade a minha!) quando o meu António se serviu de um copo de vinho tinto. Num velho relógio de sala ouvi bater o meio-dia e instantes depois doze badaladas num sino de igreja que nunca vi. Terá sido por essa altura que a toalha se encheu de pratos, talheres e travessas a transbordar de cozinhados com aromas intensos (respirei fundo quando o meu senhor me protegeu com um pano de cozinha lavado), e apareceram outras mulheres velhas com a mesma roupa escura e o mesmo aroma que desconheço. Todas beijavam e abraçavam o senhor António e fiquei a saber que iríamos ficar neste lugar uns quatro ou cinco dias. Ouvia-se ao longe o ruído de uma motorizada quando ele perguntou a uma das mulheres quando chegava da França uma tal Maria, no silêncio que se seguiu tive a certeza que o coração dele voltava a ficar irrequieto e depois se acalmava ao ouvir as palavras Hoje à Tarde (e me arranjava o colarinho e alisava nas mangas).Hoje à tarde! Que estranho sentido têm estas palavras, e que vazio fica quando as repito com as poucas forças que me restam! Como vazio ficou de repente este lugar! Da televisão pregada junto ao tecto ainda chegam sons sem harmonia; parece-me que alguém não fechou completamente a torneira por detrás do balcão. Chegam-me vozes lá de fora, mas não consigo perceber o que dizem. Também me pareceu ouvir de novo, ao longe, a motorizada. Começaram a chegar as moscas. Saberão elas quantos bichos-da-seda morreram para fazer este tecido?

(...)

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