sábado, 25 de julho de 2009

O Testamento da Velha Senhora

Era o cair de uma tarde de Abril. A velha senhora aspergiu com água as brasas da lareira, desligou o rádio, percorreu todos os compartimentos da casa e fechou as janelas, destrancou a porta que dava para a rua, apanhou uma casca de laranja esquecida em cima do aparador. Depois voltou a entrar em cada um dos compartimentos e deixou em cada um deles um olhar vagaroso. Por fim, lavou o rosto e os braços, penteou-se com vagar, da arca aos pés da cama retirou um vestido azul com aromas de madressilvas, alisou-o com as mãos, vestiu-o com esforço, olhou pela última vez o quarto, encostou a porta devagar e encaminhou-se para a sala. Da mesa retirou uma cadeira, arrastou-a para junto da janela, sentou-se, cruzou as mãos sobre o regaço e lançou o olhar para um ponto distante do vale. Caía nessa altura uma neblina com tons do mesmo azul do vestido. Durante alguns instantes não se ouviu qualquer som e a velha senhora pareceu ter parado de respirar. Então, ouviu-se um longo suspiro e depois as primeiras palavras, que pareceram ecoar sobre todo o vale e penetrar na neblina distante. Seguiram-se as frases soltas, desligadas umas das outras, ou presas por fio que só ela conhecia. Um ritmo subtil parecia segurá-las:



as agulhas do frio e o cheiro da ardósia quando a manga da camisola apaga o que foi escrito

o ladrar dos cães nos nevoeiros de Novembro

o cheiro da pólvora e os gritos. A luz da tarde nas baionetas, um chapéu de soldado caído na rua

a chuva e o sol misturados na rua da igreja num dia de Janeiro

o bater das cinco da tarde e o sangue morno entre as pernas, a primeira vez

o luar nas costas dele, a primeira vez

o véu e a grinalda, os grãos de arroz numa tarde de Junho

a bicicleta do carteiro e os envelopes com as cartas de África

a carta do governo na mão do carteiro, o envelope branco, as letras negras

o uivo dos lobos numa noite de Janeiro

os domingos de ramos, a luz do sol nos ramos de oliveira

o ferver do açúcar na panela de cobre e o vento de Outubro nas árvores

os olhos verdes do homem que tirava rosas do chapéu

as mãos do homem de olhos verdes e duas pétalas de rosa no meu peito

o homem de olhos verdes a desaparecer no fim da rua

o canto das cigarras e o perfume das tangerinas

as manhãs de Março e as tardes de Setembro

o cair da noite em Agosto

uma andorinha

o céu

uma pena de ave e o rio, a cor da chuva, o gelo das pedras, os dedos na luz do sol, a pele, a claridade da sombra

este silêncio

Disse a última frase, respirou fundo e aconchegou o corpo à cadeira. Depois foi descendo o olhar do ponto distante onde o pousara, até à copa das árvores da rua, ao parapeito da janela, aos dedos das mãos.Só então fechou os olhos.

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