sábado, 25 de julho de 2009

O Desejo


Repito que é refrescante esta água e este silêncio. Agora já nada me preocupa. Não sei se recuperei a fé, nem se Deus me perdoou. A corrente de frio que passa por mim lembra-me a brisa que sempre corria neste lugar. Ainda me acodem os instantes do dia em imagens soltas, porventura trazidas pela brisa que sopra sempre por aqui.

O povo notou o desaparecimento da capela da Nossa Senhora da Graça pouco depois do lançamento dos foguetes. Seria por volta das sete da manhã. Pela janela aberta do quarto chegou-me o alvoroço que já esperava e temia. Não demoraram muito a ouvir-se as primeiras pancadas na porta. Demorei o tempo que pude para me arranjar e sair. Foi imediato o cerco que me fizeram, o desespero com que me apertaram os braços e apontavam o cume da montanha. Não estranhei o medo que havia nos olhos de todos. Eu mesmo o sentira horas antes. Apesar de ter sido meu, o desejo.
Não demorou muito que um pesado silêncio abafasse o burburinho e todos se convencessem de que eu estava tão surpreendido como eles. Acompanhei-os no olhar pasmado para o cimo do monte, no devaneio pelos cumes das montanhas à volta e na busca da posição do sol, na dúvida sobre a realidade do mundo em que se encontravam; o meu olhar regressava como o deles ao ponto de partida: o monte, a estrada íngreme, as escadas e o muro de pedra, as grades de ferro, o coreto onde as bandas tocariam, os fios com os triângulos coloridos ao vento. O vazio, uma cabeça cortada, um corpo adormecido num silêncio aterrador, era o que parecia o monte sem a capela.
Era cedo para se darem conta do desaparecimento dos dois jovens e disso dei graças a Deus। Mas soube que era uma questão de tempo, poucas horas. À luz do dia sentia agora a tempestade que me fustigara no início da madrugada. Vi com terror que era íngreme o caminho que me restava percorrer para o vazio dentro de mim.

(...)

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