domingo, 26 de julho de 2009

Amnésia

Era uma hora incerta do cair da noite aquela em que Júlio Ferreira caminhava pela rua principal de Vila Azul. Não o surpreendiam os sinais habituais do fim do dia (o lavar do soalho as lojas, o virar de cadeiras em cima das mesas de um ou outro café, o multiplicar dos faróis dos automóveis e dos vultos apressados). Não o impressionavam esses sinais nem o facto de surgirem com extraordinária clareza as badaladas do sino da igreja. Tudo lhe era familiar e aconchegante. Caminhava com passos lentos, as pontas dos pés exageradamente voltadas para fora, os ombros ligeiramente encolhidos e as mãos nos bolsos do casaco como sempre fora o seu hábito. Nos últimos minutos um pensamento o inquietava: não sabia de onde vinha, por mais esforços que fizesse para recordá-lo. E com esse desconhecimento inconcebível coexistia a certeza de estar de regresso a casa.
Enquanto se ia esgrimindo o melhor que podia com essa inoportuna confusão, não conseguia deixar de reparar em pormenores das coisas à sua volta que, embora vulgares, pareciam esconder algo de extraordinário que nunca se revelava. Foi assim que se deteve na palidez dos candeeiros da rua e nos reflexos dessa luz no metal dos automóveis, no tom azulado dos vapores condensados nos vidros das montras e no orvalho no asfalto na estrada. Decidira há instantes atrás que o mais provável seria sofrer de uma amnésia passageira, provavelmente causada por uma fortuita pancada na cabeça. Se assim fosse, como esperava, em breve tudo voltaria a ser como antes: a consciência do passado no seu devido lugar a dar sentido ao futuro que não deixaria de se aproximar (nele estaria escrito a sua entrada em casa, onde o esperava a mulher e as filhas e o temperado jantar). Saíra porventura para tomar um café ou comprar tabaco e uma amnésia levara-lhe os últimos minutos de vida. As últimas horas, vendo bem, e os últimos dias, pois todo o passado lhe fugia à medida que se concentrava nele. Talvez fosse por esse motivo que se sentia um tanto ou quanto trôpego a caminhar – toda a gente sabia que as pancadas na cabeça podiam dar em coisas assim.
Reparou que, para além do bolso das calças onde chocalhava a chave de casa presa à sua velha corrente, todos os outros se encontravam vazios – facto que comprovou por duas vezes, percorrendo todas as cavidades da roupa, sem parar de caminhar e com o olhar pousado na esquina ainda distante onde teria que virar à esquerda। Era verdade que não possuía um centavo, um pedaço de cordel ou uma tampa de cerveja ali caída por acaso. Nem o tal maço de cigarros – porque ele fumava, disso conseguia lembrar-se. Tinha os bolsos lisos e limpos como os de um fato acabado de chegar da lavandaria.Parou para se dobrar e apalpar a bainha das calças – não tinham nem um grão de poeira e todo ele cheirava a naftalina, disso não havia dúvida; e os sapatos engraxados, luzidios como a estrada.

(...)

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