sábado, 25 de julho de 2009

O Sonho de Sócrates



No tempo que me resta antes que a pedra seja de novo lançada para longe e eu tenha que correr como um relâmpago atrás dela, tentarei recordar outra vez o meu último sonho Tenho de voltar sempre ao início, porque não encontro outra forma de compreender o instante inominável em que estou prestes a cumprir a minha heróica missão, ouço gritar o meu nome e sinto com uma pena indizível que é o meu sangue que começa a correr.


Ele chega ao vale numa tarde de Novembro, pouco antes do cair da noite. Ao fim de algum tempo todos corremos ao seu encontro. Afinal de contas, há muito que ninguém vê um forasteiro entrar no nosso reduto – não porque o não desejemos ardentemente, mas porque, como é do conhecimento de todos, nos encontramos aprisionados. Relembro com traços rápidos os contornos do nosso cativeiro. Os pormenores que omito são irrelevantes. Interessa-me a ligação subtil que existe entre as coisas e assim penso que deva acontecer com todos os outros.
A única saída do nosso vale era pelo trilho sinuoso ao longo do Desfiladeiro dos Ventos. A escolha daquele lugar pelos nossos antepassados fora sábia quando fugiam das hostes bárbaras que sempre os perseguiram; revelou-se imprudente com o passar do tempo – já ninguém recordava o dia preciso em que Cérbero, o homem monstruoso, se apoderara da entrada do vale. Dizia-se que o homem maldito fazia uma pergunta a quem se aproximasse da boca do desfiladeiro e matava quem não lhe desse a resposta verdadeira. Perderam-se no tempo os nomes dos que, por uma razão ou por outra haviam tentado sair. Pensava-se, embora ninguém o tivesse ainda presenciado, que o mesmo aconteceria a quem no vale quisesse entrar. De quando em quando, um temerário aproximava-se da ligeira elevação de onde se divisava o abrigo do homem e contava como estava crescida a pilha de crânios dos nossos semelhantes. O medo voltava então a apoderar-se de nós, não de forma visível, mas na maneira silenciosa e transbordante de orgulho com que o nosso clã sempre soube guardar as emoções.
Alguns de entre nós, por necessidade ou simples devaneio, praticavam há muito o que se chegou a chamar a Arte da Ilusão Aplicada. Consistia mais ou menos nisto: um grupo de iniciados juntava-se na clareira sul do vale, sentava-se na relva de modo a que os corpos se tocassem, fechavam os olhos durante o tempo equivalente a uma corrida entre as duas fragas redondas, e pensavam numa terra sem limites, abundante de carne fresca e água cristalina. Então, e por uma ordem previamente definida, abriam os olhos; quando o último o fizesse, deviam voltar-se todos de uma só vez para a entrada do desfiladeiro. É verdade que por vezes todos conseguiam ver, não raro imerso num leve neblina, a figura do nosso salvador. Era em tudo igual a cada um de nós, mas de semblante brilhante, onde era impossível não ficar prisioneiro do poderoso e tranquilo olhar. A visão não demorava mais do que breves instantes, mas era suficiente para passarmos os próximos dias, por vezes o tempo de uma lua, acreditando com firmeza sermos livres e o nosso vale agreste uma terra de prazeres indizíveis, de onde não se saía por ser ali o paraíso e onde ninguém chegava por ninguém mais conhecer a sua existência. Quando a monotonia dos dias, as agruras da luta diária para comermos e saciarmos a sede nos pregava de novo à realidade, os real fazedores de sonhos, ou os sonhadores do real fazível, como gostavam de se chamar, voltavam a reunir-se e tudo recomeçava.
Mas naquela tarde em que ele apareceu não houvera reunião dos sonhadores, não constava da memória de alguém que alguma vez a ilusão tivesse acontecido dias depois da última reunião, nem havia qualquer espécie de neblina; a tarde era, aliás, de uma transparência invulgar। Ainda assim, demorou algum tempo para que quem o viu corresse ao seu encontro, prova provada de que, quando se acredita na ilusão, é à realidade que compete provar a existência.Ele surgiu no cimo da encosta junto às fragas pontiagudas, dizem que ficou longos instantes a olhar o vale com uma imobilidade de ferro e só então começou a descer. Os passos eram confiantes, embora possuídos de extraordinária lentidão. Ninguém se lembra de quem foi o primeiro a mover-se, mas subitamente correu ao seu encontro uma gigantesca nuvem de pó. Instantes depois todos sabíamos que o terrível Cérbero morrera, alguém gritou que chegara a liberdade, alguém gritou vivas e lançou uivos de felicidade, alguém gritou que o nosso salvador estava ferido e acabava de desfalecer. Foi comprido e silencioso o cortejo que ao cair da noite desceu ao centro do vale, levando nas costas o corpo inanimado daquele a quem ainda desconhecíamos o nome. Nas horas seguintes ardeu em delírios vários, neles falava de lugares distantes e da luta titânica que travara. Pela manhã, um grupo de corajosos aventurou-se a entrar no desfiladeiro. Testemunharam a morte da besta, os vestígios sangrentos da luta e a imensidão da planície à frente dos olhos. Um deles decidiu não voltar e aventurar-se sem demora no mundo desconhecido.

(...)

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