domingo, 20 de junho de 2010

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Quem conta um conto acrescenta um ponto: leitura de O Vendedor de Ilusões

1. O conto, um “universal cultural”

Toda a gente em todos os tempos e lugares gosta de histórias, porque o seu formato tradicional é um “universal cultural”.
A importância dos contos advém-lhes de neles se reflectir a estrutura colectiva da mente humana. Uma história vive de personagens, de caracteres, mais do que de eventos. Trata das vicissitudes das intenções humanas. E através das histórias atribuímos sentido à experiência e ao mundo. É essa, a característica da história, o facilitar o conhecimento do mundo, concretamente do mundo social, ajudando a compreender a vida actual, a vida das sociedades.
O fio da história, a storyline, uma corda com fios e nós, segue a lógica da aprendizagem infantil, do concreto para o abstracto, do conhecido para o desconhecido e mistura indistintamente veracidade e imaginação tão presentes na mente das crianças! Exprime abstracções e a capacidade de servir-se delas e usa esses conceitos tão profundamente, que compreende com eles , para dar sentido a novos conhecimentos.
As histórias diferenciam-se da história porque são mais próximas da vida real, mais emotivas e menos analíticas, veiculam estereótipos de vária natureza e diversidade cultural. Narram uma história do parece que, mais aberta a múltiplas leituras e interpretações, e incentivam e apelam á exploração, à ficção de múltiplas hipóteses.
Assim estes 17 contos de O Vendedor de Ilusões. Com um estilo de construção anti-positivista, definem o contexto, criam as personagens quase sempre humanas e poucas animais, investigam formas de viver, e por fim resolvem problemas reais de resolução premente. São ricas de incidentes críticos que condicionam os eventos e o desenrolar do final dos contos, invariavelmente, ilógicos.
Um livro de contos, como este é, há-de ser o prazer e o descanso de qualquer leitor

2. Uma leitura breve dos contos de O Vendedor de Ilusões

Começando pelo título que logo faz lembrar o “Guardador de rebanhos” de Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa), estes contos são, no seu conjunto, uma aposta literária muito bem conseguida. A ambiência geral é de suspense, onde assoma uma espécie de terror velado, em suspensão, que joga com as expectativas certas do leitor, catapultando-as para um non-sense desconcertante.
Todos os contos, breves, como “A Pedra” ou mais longos como os “Jacintos Queimados”, solitários e expostos, resistem, e bem, a qualquer leitura, ficando o conjunto, competentemente representado, em cada um deles.
O decisivo nesta colecção de contos assenta noutra qualidade: serem exemplos brilhantes do género literário "conto" e, ao mesmo tempo, absolutamente singulares. Como se Gilberto Pinto, professor e engenheiro de profissão, se tornasse, à sua maneira, através da escrita, no inventor mágico de um género, pelo qual cada vez mais, menos se interessam, dada a dificuldade de construção inerente.
Paradoxal que pareça, isto caracteriza os grandes contistas: não se distinguirem por escreverem contos extraordinários mas por inventarem a forma do conto.
Os contos de O Vendedor de Ilusões não cabem facilmente em nenhuma das categorias lineares: não são realistas nem formalistas; nem também exemplo do que agora se chama ficção metaliterária. Intrigante e verídico, em seu modo peculiar, cada conto é um caso teórico, na medida em que insere uma experimentação de magia na construção do argumento narrativo e na própria linguagem.
Pressente-se que neles se trata de algo mais, e quer-se então alguma explicação mais conforme com a vida. Provavelmente, a única disponível é: estes contos falam de homens e mulheres que actuam e representam a ruína da interpretação para dizerem que o sentido da acção humana não é dado, nem ilustrável, nem decifrável, nem transmissível. Não porque a acção humana seja destituída de sentido, antes porque a imaginação e o logro súbito e inesperado do narrador retornam sobre a sua obra, e lhe recobrem o sentido, como explicitamente se demonstra no conto final “A página em branco”.
Neste livro, assistimos á transformação alquímica da palavra, numa grande contenção da escrita que diz sempre mais do que parece dizer, revelando de súbito o imprevisto, num encadeado de metáforas que surtem o efeito de desconcerto. Homens com cheiro a naftalina e a lavado caminhando sonâmbulos por ruas desertas em fins de tarde, ao cair da noite, ou sob o amanhacer, e mulheres de roupa sombria, enredando-se nos pormenores das coisas vulgares que escondem sempre algo de extraordinário, singularizam-se e ganham identidade quando revelados inopinadamente pelo autor/narrador cuja presença se intromete na nossa leitura, num passe de mágica.
De o “O súbito frio da tarde”- narrativa de uma camisa “prostituta” que acaba morta com 3 facadas, a “A cortina do mundo” – história de um homem velho com uma saca de memórias que termina com um som e uma criança no alpendre, sua própria imagem , passando por “Uma borboleta”, numa casa de quinta, com a cegueira sugerida pelo tacto nas cadeiras líquidas e a borboleta como uma corrente de ar, presságio de tragédia que se anuncia numa tarde de primavera, com o cheiro das violetas, dos bolos e dos cozinhados, encontramo em Amnésia – a consciência do passado a dar sentido ao futuro (p. 27); história de um homem em levitação, sob paredes de vidro, em descrições á Juan Carlos Onetti (escritor da América Latina) que começam por pormenores ínfimos e se desenrolam como num filme de pequena angular em plongée. De repente o usual desaparece e surgem outras histórias, o típico de um processo de amnésia.De longe, só o gemido do cão…foi quando se lembrou.
Demoramo-nos um pouco mais em Os Jacintos Queimados – um conto cor das ervas e do musgo gelado. A procura do livro desaparecido no dia em que o barbeiro se enforcou e a visita inesperada de uma mulher de preto, pele de aristocrata, um desenho no rosto como um sorriso, e livro na mão, sem falas, comendo uma maçã, num andar de quem toca os pés num chão de gelo, presença intrigante na barbearia da Vila Alexandra, onde trata as unhas sujas dos homens oferece o livro ao barbeiro como quem estende a hóstia sagrada pelo qual ele tudo abandona, de súbito concentrado nas histórias (dos soldados e dos falcões dos caçadores da estepe cavalgando alucinados à procura da invisível cidade de bronze, na busca da imortalidade, história contada em 2º nível, que se acrescenta com a presença de um lobo e de um marinheiro vagabundo). Regular, diariamente, era a chegada do aroma dos jacintos, com a vinda da mulher , e os clientes, a procurarem a barbearia. A loucura e obsessão do barbeiro e com a mulher, na igreja, passeando-se depois á sombra das árvores.
Saltamos O Testamento da velha senhora – conto pequeno, ao contrário do anterior, os Montes brancos (p.52), O labirinto do velho guerreiro (pág. 55), A invisibilidade (p.61) O desejo (p.63), A febre (p.68) e O convite (p.74) Crítica directa ao modo redutor de olhar o mundo.
Em O sonho de Sócrates (p.79) e O regresso do Minotauro ( p.86) – marca presença a eterna mitologia clássica para nA Pedra (p.90) – da eternidade, o narrador se sentar defronte da casa vazia olhando as amoreiras e os plátanos, a bola do miúdo e o cão que de repente se suspendem no ar, brilhando. Deste conto, um dos mais biográficos, passamos a O Vendedor de ilusões (p.92) que dá o nome ao livro, construído sobre uma analogia entre a conquista do leitor pelo narrador, criador de magias, e o mágico que encanta o público sob o arco íris gritando que era branco, e caiu no rio.
Eis - nos por fim chegados A Página em branco” (p.101) – último conto e fim dos contos. O mundo continua a existir depois da última frase. Doze personagens descem a encosta e ficam como que petrificadas nas pedras da calçada. Quais actores de teatro perambulam em busca dos vestígios de sentimentos, no vazio assustador da noite e na transparência do ar.
É este conto, uma espécie de chave de leitura do conjunto dos contos e e um revelador do narrador sentado na pedra donde se avista a eternidade, dividido entre o planalto e a cidade. Uma chave que abre para quem, como e porquê escrever contos cujas personagens são imagens que os espelhos da fantasia nos devolvem, seres vivos em suspensão no silêncio da rua que um homem solitário sobe e desce, como quem percorre os dias, decifrando, obsessivo, os pontos cardeais, sempre tocado pelos ventos loucos e por sons recorrentes.



3. O conto, narrativa de uma criação

Entre a palavra falada e a palavra escrita, entre o mito e a história, entre o fabuloso e o que se pretende verdadeiro e concreto, o escritor manipula o sagrado, o significativo, o exemplar , e constrói uma efabulação encantatória, intrigada e intrigante.
O conto é a narrativa de uma criação como diz Mircea Eliade. As palavras e sobretudo as frases, brincadas, e a construção frásica burilada como se de renda de bilros se tratasse, assumem um carácter de arquipotência no pensar metafórico e na conformação simbólica que se confunde com o poder dos deuses a que nada nem ninguém escapa.
No início, tudo surge unido, para logo a seguir se desconstruir e terminar no insólito que desconcerta qualquer lógica aparente, num processo imanente de reflexão sobre a condição humana no mundo, através do efeito sensorial dos aromas de flores (jacintos, violetas, etc), árvores, arbustos, ervas e sons ( toque nostálgico dos sinos, tinido compassado dos relógios, passos no asfalto ou nos degraus de pedra).
A leitura de cada um destes contos fantásticos que evocam a escrita de Hoffmann, mestre contista, feitos de comportamentos extremamente e estranhamente humanos, dá-nos a ver a magia suspensa, atemporal, em espaços e silêncios grávidos, numa interface entre fantástico e quotidiano, em que estão presentes múltiplos elementos: ironia e reinvenção de rituais mitológicos cíclicos, rotatividade travestida das personagens imagéticas, transfiguração fantástica do mundo habitual. Neles se misturam invariavelmente o fantástico, o maravilhoso e o estranho, à maneira de Kafka, ou então, próximo da lógica abdutiva de Edgar Allen Poe, o aflorar evanescente do suspense policial. Há uma livre expressão, camuflada na linguagem, de temas tabu travestidos numa linguagem sobrenatural, de acontecimentos inevitáveis, estranhos e imprevistos como a morte (suicídio ou o assassinato) denotando a relação da literatura fantástica com imagens submersas no inconsciente humano. Em suma, uma configuração simbólica em que se imbricam os níveis psicológicos, sociais e metafísicos
Os conflitos humanos como problemas que a consciência lógica e objectiva não explica nem alcança, com a incorporação de acontecimentos inusitados que nos pregam “sustos” inesperados diante de situações normais que de súbito se tornam inexplicáveis, pedem uma explicação transcendental. O problema da existência humana como uma questão metafísica para a qual o homem não encontrou ainda resposta satisfatória.E por isso continua escrevendo e lendo contos, como quem acrescenta pontos à linha da vida.

ISEP, 21 de Outubro de 2009


Maria Otília Pereira Lage

sexta-feira, 31 de julho de 2009

domingo, 26 de julho de 2009

Sinopse

Trabalhava sozinho desde que o seu mestre morrera, havia mais de quatro anos. Acompanhara-o desde criança pelos caminhos sem fim, perseguindo as feiras e as romarias. Com ele aprendera todos os truques que conhecia, a destreza com os dedos das mãos, o olhar enigmático com que devia enfrentar a multidão e o segredo de oferecer no instante certo o que os outros, sem o saberem, desejavam ver. O mestre ensinara-lhe que só com a magia os homens conseguiam compreender o mundo. Nessa verdade acreditava, era um Vendedor de Ilusões e disso decidiu fazer o seu modo de vida. Até surgir aquele dia de Inverno em que os alicerces do seu mundo haveriam de ruir. Tudo terminaria na primeira manhã de Abril.
No universo de O Vendedor de Ilusões o insólito e o fantástico passeiam-se de mãos dadas com a normalidade do quotidiano. Transformam-na numa realidade nova, enriquecida com aquilo que o nosso olhar procura insistentemente e tão raras vezes encontra. Perturbador, imprevisível e implacável é o lugar onde se movem as personagens deste livro. Como, afinal, é o mundo onde todos nos movemos.

O Súbito Frio da Tarde


Nunca esperei que isto me acontecesse. Muito menos desta maneira, tão rápida e cruel. Choca-me, deixem que lhes diga, a falta de maneiras do monstro que me pôs neste estado. Bem vinda ao maravilhoso mundo dos homens, dirão alguns.
Se bem me lembro (a minha memória enfraquece a cada instante que passa, na medida exacta em que este sangue pegajoso se espalha pelo meu corpo imaculado) fui comprada na manhã de ontem, na altura dos bons clientes, como sempre ouvi da boca das empregadas da loja: nessa hora em que ainda resistem os aromas frescos aos detergentes, o silêncio não tem que lutar contra os gritos das crianças e os corpos ainda exalam os perfumes cristalinos do primeiro banho. A pele do homem tinha o aroma dos sabonetes baratos, era possuída de uma rigidez de cobre e transpirava o hábito de se expor ao vento e às intempéries. Senti primeiro um certo desconforto, depois fiquei nervosa, desejei que me achasse demasiado cara para a sua (com certeza) magra carteira, e, por fim (não me perguntem porquê), e para mal dos meus pecados, dei por mim a ajustar-me ao seu corpo com todo o saber que acumulei durante tantos meses de espera. Abracei-o como o faria a mulher dos seus sonhos, e, sem falso orgulho, atrevo-me a dizer, emprestei-lhe a elegância que claramente não tinha quando entrou na loja. Espanto o meu quando me deixou aberta na medida exacta enquanto sorria para o espelho, e leviandade a minha de me ter nesse instante afeiçoado ao seu corpo, suspirando pela longa e feliz vida que me esperava. Não me devo enganar se disser que me salpicou uma inusitada ansiedade quando ele me despiu e entregou à empregada. Posso jurar por todos os bichos-da-seda que cheguei a desesperar durante a tarde em que me deixou abandonada na caixa de cartão e durante a noite em que me deixou estendida (coisa que fez com cuidado, é verdade) em cima de um velho sofá. Aos primeiros raios da manhã esqueci essa afronta e ofereci-lhe o meu brilho cristalino. O preço dessa vaidade é o estado em que me encontro.
O dia ainda mal nascera quando me vestiu de novo (juro que rejubilei quando senti o seu corpo transpirar uma alegria contida), aceitei, despreocupada, o acento do casaco sobre mim, reparei que o meu senhor se benzia ao sair do quarto e minutos depois rodávamos contentes pela auto-estrada.
Não sei durante quanto tempo viajámos। Tenho imagens fugazes de uma estrada que se foi tornando cada vez mais estreita e sinuosa e de a planície se transformar em montanhas temerosas. Recordo o sol branco e a impressão desagradável do suor a inundar-me e a surpreendente frescura da sombra onde parámos. Da casa minúscula saiu uma velha mulher, que após meia dúzia de passos se deteve, ofegante. Lembro com algum desgosto o abraço longo a que se entregaram (fui completamente amassada contra aquele corpo flácido que cheirava a coisas que nunca conheci e me deixou uma nódoa de gordura ao lado do terceiro botão), lembro os olhos húmidos da mulher, o bater acelerado do coração do meu senhor (a quem ela chamou com voz débil Meu Filho). Instantes depois ouvi pela primeira vez o seu nome, António. Entrámos na pequena sala que me pareceu ter sido limpa e arranjada nessa manhã, sentámo-nos à mesa coberta com uma toalha de linho puro e temi pela minha vida (que ingenuidade a minha!) quando o meu António se serviu de um copo de vinho tinto. Num velho relógio de sala ouvi bater o meio-dia e instantes depois doze badaladas num sino de igreja que nunca vi. Terá sido por essa altura que a toalha se encheu de pratos, talheres e travessas a transbordar de cozinhados com aromas intensos (respirei fundo quando o meu senhor me protegeu com um pano de cozinha lavado), e apareceram outras mulheres velhas com a mesma roupa escura e o mesmo aroma que desconheço. Todas beijavam e abraçavam o senhor António e fiquei a saber que iríamos ficar neste lugar uns quatro ou cinco dias. Ouvia-se ao longe o ruído de uma motorizada quando ele perguntou a uma das mulheres quando chegava da França uma tal Maria, no silêncio que se seguiu tive a certeza que o coração dele voltava a ficar irrequieto e depois se acalmava ao ouvir as palavras Hoje à Tarde (e me arranjava o colarinho e alisava nas mangas).Hoje à tarde! Que estranho sentido têm estas palavras, e que vazio fica quando as repito com as poucas forças que me restam! Como vazio ficou de repente este lugar! Da televisão pregada junto ao tecto ainda chegam sons sem harmonia; parece-me que alguém não fechou completamente a torneira por detrás do balcão. Chegam-me vozes lá de fora, mas não consigo perceber o que dizem. Também me pareceu ouvir de novo, ao longe, a motorizada. Começaram a chegar as moscas. Saberão elas quantos bichos-da-seda morreram para fazer este tecido?

(...)

A Cortina do Mundo



Ao romper da manhã os homens encontravam-se no fundo da encosta. Eram sete, espalhados ao longo de uma linha cortada pelas rochas, urzes e giestas queimadas pelo incêndio do último verão. Caminhavam devagar, calculavam com precisão o lugar onde iriam colocar os pés, todos traziam uma espingarda a tiracolo e um cantil preso à cartucheira. Os dois cães seguiam a algumas dezena de metros à frente, invisíveis entre as fragas, as giestas altas e a sombra dos pinheiros.

O velho acordou de sobressalto, esfregou os braços e arrastou-se até à luz. Reparou que não havia vento nem pássaros no céu. Olhou o fundo da montanha, a nascente, onde havia ainda o nevoeiro, e, por baixo dele, as casas. Tentou recordar as horas que demorara a chegar até ali durante a noite, mas era difícil, agora, à luz do dia, encontrar na memória pontos de contacto com o que acontecera entre as trevas. As distâncias mudavam com a luz, sempre assim fora. Mas era certo que correra, caíra e rastejara durante várias horas, e, por fim, encontrara aquele buraco entre as pedras onde não chegava o vento. Não fizera lume porque não sabia a direcção para que estava voltada a entrada. Usara o sobretudo como manta e sentara-se. As dores ainda eram suportáveis. Adormecera pouco depois.
A dor obrigou-o a dobrar-se até aos joelhos e a procurar o tornozelo sob a meia rasgada. Parecia uma bola prestes a rebentar e era dali que saíam as dores maiores; as outras apareciam a espaços. Olhou à volta: no espaço que conseguia divisar não havia sinais de ramos caídos no chão, ou de uma árvore de onde pudesse cortar algum. Só havia a terra e as pedras, a encosta íngreme até ao nevoeiro, a Nascente, a falésia lisa até às águas do rio, do outro lado. Voltou a entrar no buraco e tacteou até encontrar o sobretudo. Arrastou-se de novo até à luz do sol, perscrutou o espaço até onde o olhar permitia e retirou do bolso interior a caixa de cartão.
Pousou-a no sobretudo estendido em cima dos joelhos. Tinha dificuldade em desapertar o cordel que a envolvia (um golpe atravessava-lhe a mão direita e nascia dele uma ardência que já se espalhava pelo braço). Por fim conseguiu abri-la e um olhar bastou para concluir que não faltava nada. Moveu-se ligeiramente para acomodar as costas contra uma rocha, observou de novo o céu e as montanhas, espreitou por cima do ombro o silêncio que o nevoeiro ainda encerrava no fundo da encosta, fechou os olhos por instantes e abriu-os de novo para o interior da caixa.
As suas coisas. Bastava tocar-lhes com os dedos para percorrer os anos do passado. Havia alturas em que o fazia só com o olhar, se estivesse mais cansado, ou mais desinteressado de tudo, não sabia. Em horas incertas, sentava-se à sombra de um plátano, ou resguardava-se do vento atrás do muro mais próximo, abria a caixa e observava as imagens cristalizadas naquelas coisas. Alturas havia em que passava semanas ou meses sem o fazer. Não sabia porquê. O importante era que a caixa, ainda que fechada dias a fio e amarrada com o cordel, tinha de estar sempre consigo, no bolso do sobretudo ou na saca que prendia ao cinto nos dias de calor. Um dia deixara-a escondida entre as pedra, no pinhal a sul da aldeia. Era uma manhã de primavera e sabia-lhe bem mergulhar nas águas do ribeiro. Mas tivera de voltar a correr, a vestir-se enquanto corria porque um pensamento sombrio quase o afogava com o peso que subitamente lhe nascera no peito. E tão rapidamente como nascera, essa coisa misteriosa desvanecera-se quando voltou a ter a caixa entre as mãos. A partir desse dia nunca mais se separou dela – as vezes em que a chuva fustigava os caminhos ou o calor o obrigava a imergir o corpo nas águas do ribeiro ou no primeiro tanque de rega que encontrasse, a caixa encontrava o seu abrigo inviolável dentro dos dois sacos plásticos da loja de fruta da vila.
Voltou a olhar por cima do ombro o vale ainda escondido pelo nevoeiro। A impressão de um ruído distante fê-lo soerguer-se e perscrutar o espaço a toda a volta, mas só encontrou o silêncio da manhã e voltou a acomodar-se contra a rocha. A dor maior obrigou-o a cerrar as pálpebras; quando se desvaneceu havia pontos cintilantes à frente dos olhos. Assaltou-o a vontade de mergulhar o rosto numa água gelada e beber dela até à exaustão.Tudo começara com a sede que tivera no dia anterior, ou com a febre de inferno que não o largava há quatro ou cinco dias.

(...)