domingo, 26 de julho de 2009

A Cortina do Mundo



Ao romper da manhã os homens encontravam-se no fundo da encosta. Eram sete, espalhados ao longo de uma linha cortada pelas rochas, urzes e giestas queimadas pelo incêndio do último verão. Caminhavam devagar, calculavam com precisão o lugar onde iriam colocar os pés, todos traziam uma espingarda a tiracolo e um cantil preso à cartucheira. Os dois cães seguiam a algumas dezena de metros à frente, invisíveis entre as fragas, as giestas altas e a sombra dos pinheiros.

O velho acordou de sobressalto, esfregou os braços e arrastou-se até à luz. Reparou que não havia vento nem pássaros no céu. Olhou o fundo da montanha, a nascente, onde havia ainda o nevoeiro, e, por baixo dele, as casas. Tentou recordar as horas que demorara a chegar até ali durante a noite, mas era difícil, agora, à luz do dia, encontrar na memória pontos de contacto com o que acontecera entre as trevas. As distâncias mudavam com a luz, sempre assim fora. Mas era certo que correra, caíra e rastejara durante várias horas, e, por fim, encontrara aquele buraco entre as pedras onde não chegava o vento. Não fizera lume porque não sabia a direcção para que estava voltada a entrada. Usara o sobretudo como manta e sentara-se. As dores ainda eram suportáveis. Adormecera pouco depois.
A dor obrigou-o a dobrar-se até aos joelhos e a procurar o tornozelo sob a meia rasgada. Parecia uma bola prestes a rebentar e era dali que saíam as dores maiores; as outras apareciam a espaços. Olhou à volta: no espaço que conseguia divisar não havia sinais de ramos caídos no chão, ou de uma árvore de onde pudesse cortar algum. Só havia a terra e as pedras, a encosta íngreme até ao nevoeiro, a Nascente, a falésia lisa até às águas do rio, do outro lado. Voltou a entrar no buraco e tacteou até encontrar o sobretudo. Arrastou-se de novo até à luz do sol, perscrutou o espaço até onde o olhar permitia e retirou do bolso interior a caixa de cartão.
Pousou-a no sobretudo estendido em cima dos joelhos. Tinha dificuldade em desapertar o cordel que a envolvia (um golpe atravessava-lhe a mão direita e nascia dele uma ardência que já se espalhava pelo braço). Por fim conseguiu abri-la e um olhar bastou para concluir que não faltava nada. Moveu-se ligeiramente para acomodar as costas contra uma rocha, observou de novo o céu e as montanhas, espreitou por cima do ombro o silêncio que o nevoeiro ainda encerrava no fundo da encosta, fechou os olhos por instantes e abriu-os de novo para o interior da caixa.
As suas coisas. Bastava tocar-lhes com os dedos para percorrer os anos do passado. Havia alturas em que o fazia só com o olhar, se estivesse mais cansado, ou mais desinteressado de tudo, não sabia. Em horas incertas, sentava-se à sombra de um plátano, ou resguardava-se do vento atrás do muro mais próximo, abria a caixa e observava as imagens cristalizadas naquelas coisas. Alturas havia em que passava semanas ou meses sem o fazer. Não sabia porquê. O importante era que a caixa, ainda que fechada dias a fio e amarrada com o cordel, tinha de estar sempre consigo, no bolso do sobretudo ou na saca que prendia ao cinto nos dias de calor. Um dia deixara-a escondida entre as pedra, no pinhal a sul da aldeia. Era uma manhã de primavera e sabia-lhe bem mergulhar nas águas do ribeiro. Mas tivera de voltar a correr, a vestir-se enquanto corria porque um pensamento sombrio quase o afogava com o peso que subitamente lhe nascera no peito. E tão rapidamente como nascera, essa coisa misteriosa desvanecera-se quando voltou a ter a caixa entre as mãos. A partir desse dia nunca mais se separou dela – as vezes em que a chuva fustigava os caminhos ou o calor o obrigava a imergir o corpo nas águas do ribeiro ou no primeiro tanque de rega que encontrasse, a caixa encontrava o seu abrigo inviolável dentro dos dois sacos plásticos da loja de fruta da vila.
Voltou a olhar por cima do ombro o vale ainda escondido pelo nevoeiro। A impressão de um ruído distante fê-lo soerguer-se e perscrutar o espaço a toda a volta, mas só encontrou o silêncio da manhã e voltou a acomodar-se contra a rocha. A dor maior obrigou-o a cerrar as pálpebras; quando se desvaneceu havia pontos cintilantes à frente dos olhos. Assaltou-o a vontade de mergulhar o rosto numa água gelada e beber dela até à exaustão.Tudo começara com a sede que tivera no dia anterior, ou com a febre de inferno que não o largava há quatro ou cinco dias.

(...)

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