sexta-feira, 24 de julho de 2009

O Vendedor de Ilusões

Trabalhava sozinho desde que o seu mestre morrera, havia mais de quatro anos. Acompanhara-o desde criança pelos caminhos sem fim, perseguindo as feiras e as romarias em honra de um santo qualquer e dele herdara todos os truques que conhecia, a destreza com os dedos das mãos, o olhar enigmático com que devia enfrentar a multidão e o segredo de oferecer no instante certo a visão daquilo que os outros, sem o saberem, desejavam ver. O acaso, ou a fortuna, havia arranjado o encontro numa manhã quente de Agosto, a escassos metros da ponte velha de Vila Rosa. O homem mergulhara a tempo no rio e trouxera-o para a margem, inanimado. A vida que o homem lhe restituiu, decidiu entregar-lha nesse instante na forma de uma servidão sem limites. Nessa tarde assistiu deslumbrado ao seu espectáculo na praça central, nessa noite não voltou ao acampamento e da água do rio nunca mais se aproximou.
Nos primeiros meses limitara-se a ajudar o homem na montagem e desmontagem da banca, lavava os tachos onde cozinhavam, fazia com diligência os demais serviços que ele lhe ordenava. Enquanto o homem actuava, ele confundia-se com os espectadores para ver com os olhos deles as ilusões que saíam das mãos do mágico. Gostava daquela posição desprevenida, onde a surpresa acontecia facilmente; por vezes tirava os olhos das mãos do homem para observar os rostos da assistência; apreciava os instantes em que seguiam com avidez os dedos do mágico e os rostos concentrados ignoravam tudo o que se passava à sua volta; deleitava-se com o espanto que todos derramavam quando o truque se consumava e a magia acontecia. Foi num desses instantes que o assaltou a certeza de o homem ter um estranho poder nas suas mãos – uma brisa que os seus dedos derramavam e que refrescava o espírito dos que assistiam; era sem dúvida esse efeito que os impedia de verem que tudo não passava de aparência. Apesar de estar sempre perto do homem quando ele ensaiava, durante muito tempo manteve firme o desejo de não querer saber como tudo acontecia por detrás do pano negro com luas e estrelas pintadas a ouro, ou o que fazia uma mão quando a outra se erguia no ar e mexia os dedos para mostrar que nada possuía. Parecia-lhe ser pecado conhecer os mecanismos secretos que faziam nascer a magia, algo como partir uma peça valiosa ou deixar de acreditar em Deus.
Mas chegou o dia em que o homem o chamou, lhe disse que se sentasse à sua frente e olhasse com atenção aquilo que as suas mãos faziam. Dos seus dedos vazios nasceu mais uma vez a moeda de vinte cêntimos e logo de seguida o lenço de seda branco que ainda nessa manhã ele pusera a secar transformou-se de novo numa rosa reluzente. Porque lhe fazia aquilo, perguntou-lhe, mas o homem não respondeu porque teve de se afastar para tossir durante muito tempo a tosse que há muitas noites o consumia. Quando chegou, fez de novo o truque da moeda e da flor; no fim ordenou-lhe que não fixasse nenhuma das suas mãos, que olhasse para o corpo todo que tinha à sua frente como se tivesse um ponto longínquo a prender-lhe o olhar; só assim veria tudo, porque a magia fazia parte do mundo e ao mundo se ligava com uma teia de milhares e invisíveis fios. O rapaz de novo lhe perguntou porque lhe ensinava aquelas coisas, e o homem respondeu que era altura de ele aprender; depois levantou-se e perdeu-se nas sombras do bosque; de quando em quando o rapaz ouvia-o tossir, sempre que o vento corria de feição.
Em poucos meses aprendera a fazer sair o coelho da cartola vazia, a destapar o polegar ileso das afiadas agulhas com o que o espetara, a transformar um simples lenço branco numa longa corda de lenços coloridos, a cobrir de invisibilidade uma moeda de vinte cêntimos, a transformá-la numa nota de cinco euros, a criar das cinzas do papel uma nota ilesa, a unir dois anéis de metal prateado e de novo separá-los, a descobrir no meio do baralho de cartas a carta que só ele não vira, a fazer nascer do lenço branco a flor que nessa manhã haveria de recolher na berma da estrada. O mestre seguia-o com olhar atento, corrigia-o vezes em fim, gritava-lhe quando o erro se repetia, por vezes elogiava-lhe o talento. Ele esforçava-se até à exaustão, até os pulsos perderem a força e não sentir as articulações dos dedos, até a cabeça estar prestes a explodir. Faltava sempre um pormenor, um movimento executado fora do tempo, a força insuficiente num dos dedos, um raio de sol que o distraía. À noite lutava numa guerra sem tréguas, onde se digladiava o sono que o cansaço trazia com o sentimento de perda irreparável que era a verdade nua e crua despida das peças da ilusão. Por vezes sonhava que fugia aos primeiros raios da aurora; corria pelos campos fora e esquecia um pouco do que aprendera em cada passo que dava; quando parava de cansaço, voltava a ser o espectador inocente que conseguia abrir os olhos de espanto perante as mãos vazias do mágico.
Chegara entretanto o Outono e os ventos gelados do cair do dia. Numa noite igual a tantas outras, o mestre pediu-lhe que partilhasse a fogueira ao seu lado. Caía a primeira geada do ano. A tosse não o deixava falar com clareza, mas cada frase parecia uma despedida e uma sentença para os dias futuros. Quando, mais tarde, o rapaz lutava com a insónia, ainda ecoavam no seu espírito as palavras do homem a dizerem que a magia era como a religião e que os homens precisariam sempre da ilusão porque só com ela conseguiriam compreender o mundo. Enterrou o mestre ao fim da manhã, num socalco da falésia onde o vento inclinava o tronco de uma nogueira. Nessa tarde chegou pela primeira vez sozinho a uma terra desconhecida. Na feira do dia seguinte enfrentou sozinho a multidão.

Foi no Inverno do quarto ano que os alicerces do mundo que conhecia começaram a desabar. Tudo terminaria na primeira manhã de Abril.

(...)

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