sábado, 25 de julho de 2009

O Labirinto do Velho Guerreiro


- Cá estamos as três, nesta eternidade, sentadas à fogueira neste monte gelado, amaldiçoadas para sempre.
- Odeio este cabelo branco com que nascemos e esta pele da cor da neve. A maldição é termos vindo ao mundo com este aspecto de velhas à beira da morte.
- E termos um só olho para as três. E um só dente. A nossa maldição é essa.
- Gostei que um homem nos tivesse chamado cisnes, um dia. Foi um romano de nome Horácio, há muitos séculos. Deu-lhe jeito esse nome para compor um verso do seu poema.
- Onde está ele, o olho? Qual de vós as duas o tem?
- Tenho-o eu mas não to dou. Quero continuar a ver o que vejo.
- O que vês tu? Tens de nos contar, ou morremos as duas de tédio!
- Não morreis porque somos imortais. O que tendes é inveja de eu ver o que vejo.
- Se não dizes o que vês, hoje não terás o dente para comer.
- O que vejo tira-me a fome.
- …
- …
- Vejo uma terra, vejo um vale, vejo montanhas altas que a separam do resto do mundo. Longe das casas há uma plantação de maçãs e o sol do fim do verão.
- Grande coisa que vês!
- Por mim, podes continuar com o olho.
- Vejo um homem.
- Um homem!
- Vês um homem!
- Vejo um homem envelhecido. Caminha cansado entre as filas de macieiras. Atrás dele seguem outros homens. São eles que vão apanhar as maçãs. Mas é o homem velho que me interessa.
- Que interesse pode ter um homem velho?
- No fim da fila caminha uma mulher. É uma mulher nova. A cor da sua pele diz que nasceu em terras da África distante. Move-se com dificuldade. Cobrem-na várias peças de roupa. Parece gorda, mas esconde um segredo.
- Um segredo!
- Dá-me o olho, quero ver!
- Não vos dou o olho nem vos conto o segredo. Só mais tarde. De quando em quando a mulher leva as mãos aos rins. O homem velho continua a caminhar, indiferente. É de manhã bem cedo. Vai começar o último dia da colheita.
- Diz porque te interessa o homem velho.
- Porque a vida dele vai mudar em breve, e a causa disso há-de ser o segredo da mulher. Mal posso esperar para ver.
- …
- Roubaste-me o olho Maldita sejas!
- A mulher que caminha atrás dos homens nasceu nas savanas a norte do rio Zambeze. Tens razão, leva um segredo com ela. Mas se eu aproximar e rodar o olho de uma maneira que nenhuma de vós sabe fazer adivinho o passado do homem velho que caminha à frente. Também ele esteve nessas terras distantes e aí foi guerreiro. Matou muitos homens. E também ele tem um segredo. Tereis de adivinhá-lo mais tarde. Desde que regressou da guerra nunca mais disse uma palavra. Agora explica por gestos o que os outros homens têm de fazer. Não o sabeis, mas é um homem sozinho. É o que acontece aos homens que perdem as palavras.
- …
- Ou continuas a contar, ou nenhuma de vós terá hoje o dente para comer.
- A fome não me incomoda.
- Há mais de quarenta anos que regressou. Quase meio século sem dizer uma só palavra. Quem o conhece diz que lhe roubaram a alma. Todos os que viviam perto dele o abandonaram. Ninguém quer viver perto de um homem sem alma.
- Chega de passado, queremos ver o que se está a passar. Ou contas, ou entregas o olho.
- Não sabereis, infelizes, que se não conhecerdes o passado nunca entendereis o segredo do presente? Mas entrego-vos o olho. Aí tendes, é de quem o agarrar.
- É meu!- Agora tens o olho e o dente! Isso nunca aconteceu!

(...)

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