sábado, 25 de julho de 2009

A Febre


Agora estamos muito bem na grande cidade de Paris. A mim, agradam-me particularmente as margens do Sena e percorro-as de uma ponta à outra sempre que posso, o que não é difícil, dada a quantidade de pessoas e cães que por ali passeiam. Eu prefiro as mulheres – além do perfume que nunca se esquecem de usar, o aroma da pele é mais delicado, e nós gostamos disso, caso não saibam. É claro que também existem razões de ordem prática nessa preferência, porque se há coisa que nós não somos é suicidas; a vida é demasiado curta para lhe apressarmos o fim: as mulheres usam mais peças de roupa, o que, tornando o passeio agradável saltando de uma camada para outra, protege-nos até chegarmos ao delírio do aroma da pele, ou do cabelo. Agradam-me habitualmente as loiras – parece que cavalgamos o mundo num corcel de ouro.
É verdade que o Inverno está a chegar, e, com a quantidade de mortes que têm existido, é provável que a nossa vida venha a sofrer algumas privações. Mas aprendi há pouco que esta ainda é a cidade da luz e aqui os turistas nunca faltam.
Eles também estão bem e fico contente com isso. Afinal, é a eles que devemos estes tempos de bonança. Sei que estão juntos, os corpos sempre unidos pelos braços ou pela boca, quando passeiam, e que ele se continua a meter dentro dela quando estão sós. Ele sabe poucas palavras de Francês e ela umas quantas de Português. Murmuram um ao outro o que vão aprendendo na outra língua. Os pais dela ainda estão internados no Grande Hospital. Talvez a mãe sobreviva. O amor deles parece protegê-los de tudo. Tenho pena de nós não sabermos o que é isso do amor. Chego a pensar, pelo que vejo, que com ele seríamos indestrutíveis.

Mas não nos podemos queixar, agora que a nossa vida melhorou tanto। Às vezes, não sem uma certa nostalgia, é verdade, recordo os tempos em que vivíamos nesse vale escondido entre as montanhas. Éramos poucas, talvez nem chegássemos às duas dezenas. Ouvi dizer que a nossa família veio de terras distantes de que desconheço o nome. Também desconheço como fomos ali parar. Eram tempos de fome e monotonia – um cão vadio de quando em quando, uma raposa, uma ou outra vez homens e mulheres, quando o nosso senhor (gosto de lhe chamar assim, agora que estamos tão bem) nos levava à aldeia. Montávamos no Fiel, subíamos para a carrinha e lá íamos nós. Voltávamos já de noite, satisfeitas. Eram dias de festa, poucos, porque o nosso senhor gostava de estar sozinho nos montes. É verdade, tão novo e tão só, e tão especial que nenhuma de nós entendia. Explico: não podemos com o seu sangue; uma simples picada enquanto ele dormia cheguei eu a experimentar por duas vezes e nem lhes digo nem lhes conto a má disposição. Jurei que nunca mais e as outras também. Eram assim esses dias, um a seguir ao outro, iguais, dormentes até à exaustão.

(...)

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