1. O conto, um “universal cultural”
Toda a gente em todos os tempos e lugares gosta de histórias, porque o seu formato tradicional é um “universal cultural”.
A importância dos contos advém-lhes de neles se reflectir a estrutura colectiva da mente humana. Uma história vive de personagens, de caracteres, mais do que de eventos. Trata das vicissitudes das intenções humanas. E através das histórias atribuímos sentido à experiência e ao mundo. É essa, a característica da história, o facilitar o conhecimento do mundo, concretamente do mundo social, ajudando a compreender a vida actual, a vida das sociedades.
O fio da história, a storyline, uma corda com fios e nós, segue a lógica da aprendizagem infantil, do concreto para o abstracto, do conhecido para o desconhecido e mistura indistintamente veracidade e imaginação tão presentes na mente das crianças! Exprime abstracções e a capacidade de servir-se delas e usa esses conceitos tão profundamente, que compreende com eles , para dar sentido a novos conhecimentos.
As histórias diferenciam-se da história porque são mais próximas da vida real, mais emotivas e menos analíticas, veiculam estereótipos de vária natureza e diversidade cultural. Narram uma história do parece que, mais aberta a múltiplas leituras e interpretações, e incentivam e apelam á exploração, à ficção de múltiplas hipóteses.
Assim estes 17 contos de O Vendedor de Ilusões. Com um estilo de construção anti-positivista, definem o contexto, criam as personagens quase sempre humanas e poucas animais, investigam formas de viver, e por fim resolvem problemas reais de resolução premente. São ricas de incidentes críticos que condicionam os eventos e o desenrolar do final dos contos, invariavelmente, ilógicos.
Um livro de contos, como este é, há-de ser o prazer e o descanso de qualquer leitor
2. Uma leitura breve dos contos de O Vendedor de Ilusões
Começando pelo título que logo faz lembrar o “Guardador de rebanhos” de Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa), estes contos são, no seu conjunto, uma aposta literária muito bem conseguida. A ambiência geral é de suspense, onde assoma uma espécie de terror velado, em suspensão, que joga com as expectativas certas do leitor, catapultando-as para um non-sense desconcertante.
Todos os contos, breves, como “A Pedra” ou mais longos como os “Jacintos Queimados”, solitários e expostos, resistem, e bem, a qualquer leitura, ficando o conjunto, competentemente representado, em cada um deles.
O decisivo nesta colecção de contos assenta noutra qualidade: serem exemplos brilhantes do género literário "conto" e, ao mesmo tempo, absolutamente singulares. Como se Gilberto Pinto, professor e engenheiro de profissão, se tornasse, à sua maneira, através da escrita, no inventor mágico de um género, pelo qual cada vez mais, menos se interessam, dada a dificuldade de construção inerente.
Paradoxal que pareça, isto caracteriza os grandes contistas: não se distinguirem por escreverem contos extraordinários mas por inventarem a forma do conto.
Os contos de O Vendedor de Ilusões não cabem facilmente em nenhuma das categorias lineares: não são realistas nem formalistas; nem também exemplo do que agora se chama ficção metaliterária. Intrigante e verídico, em seu modo peculiar, cada conto é um caso teórico, na medida em que insere uma experimentação de magia na construção do argumento narrativo e na própria linguagem.
Pressente-se que neles se trata de algo mais, e quer-se então alguma explicação mais conforme com a vida. Provavelmente, a única disponível é: estes contos falam de homens e mulheres que actuam e representam a ruína da interpretação para dizerem que o sentido da acção humana não é dado, nem ilustrável, nem decifrável, nem transmissível. Não porque a acção humana seja destituída de sentido, antes porque a imaginação e o logro súbito e inesperado do narrador retornam sobre a sua obra, e lhe recobrem o sentido, como explicitamente se demonstra no conto final “A página em branco”.
Neste livro, assistimos á transformação alquímica da palavra, numa grande contenção da escrita que diz sempre mais do que parece dizer, revelando de súbito o imprevisto, num encadeado de metáforas que surtem o efeito de desconcerto. Homens com cheiro a naftalina e a lavado caminhando sonâmbulos por ruas desertas em fins de tarde, ao cair da noite, ou sob o amanhacer, e mulheres de roupa sombria, enredando-se nos pormenores das coisas vulgares que escondem sempre algo de extraordinário, singularizam-se e ganham identidade quando revelados inopinadamente pelo autor/narrador cuja presença se intromete na nossa leitura, num passe de mágica.
De o “O súbito frio da tarde”- narrativa de uma camisa “prostituta” que acaba morta com 3 facadas, a “A cortina do mundo” – história de um homem velho com uma saca de memórias que termina com um som e uma criança no alpendre, sua própria imagem , passando por “Uma borboleta”, numa casa de quinta, com a cegueira sugerida pelo tacto nas cadeiras líquidas e a borboleta como uma corrente de ar, presságio de tragédia que se anuncia numa tarde de primavera, com o cheiro das violetas, dos bolos e dos cozinhados, encontramo em Amnésia – a consciência do passado a dar sentido ao futuro (p. 27); história de um homem em levitação, sob paredes de vidro, em descrições á Juan Carlos Onetti (escritor da América Latina) que começam por pormenores ínfimos e se desenrolam como num filme de pequena angular em plongée. De repente o usual desaparece e surgem outras histórias, o típico de um processo de amnésia.De longe, só o gemido do cão…foi quando se lembrou.
Demoramo-nos um pouco mais em Os Jacintos Queimados – um conto cor das ervas e do musgo gelado. A procura do livro desaparecido no dia em que o barbeiro se enforcou e a visita inesperada de uma mulher de preto, pele de aristocrata, um desenho no rosto como um sorriso, e livro na mão, sem falas, comendo uma maçã, num andar de quem toca os pés num chão de gelo, presença intrigante na barbearia da Vila Alexandra, onde trata as unhas sujas dos homens oferece o livro ao barbeiro como quem estende a hóstia sagrada pelo qual ele tudo abandona, de súbito concentrado nas histórias (dos soldados e dos falcões dos caçadores da estepe cavalgando alucinados à procura da invisível cidade de bronze, na busca da imortalidade, história contada em 2º nível, que se acrescenta com a presença de um lobo e de um marinheiro vagabundo). Regular, diariamente, era a chegada do aroma dos jacintos, com a vinda da mulher , e os clientes, a procurarem a barbearia. A loucura e obsessão do barbeiro e com a mulher, na igreja, passeando-se depois á sombra das árvores.
Saltamos O Testamento da velha senhora – conto pequeno, ao contrário do anterior, os Montes brancos (p.52), O labirinto do velho guerreiro (pág. 55), A invisibilidade (p.61) O desejo (p.63), A febre (p.68) e O convite (p.74) Crítica directa ao modo redutor de olhar o mundo.
Em O sonho de Sócrates (p.79) e O regresso do Minotauro ( p.86) – marca presença a eterna mitologia clássica para nA Pedra (p.90) – da eternidade, o narrador se sentar defronte da casa vazia olhando as amoreiras e os plátanos, a bola do miúdo e o cão que de repente se suspendem no ar, brilhando. Deste conto, um dos mais biográficos, passamos a O Vendedor de ilusões (p.92) que dá o nome ao livro, construído sobre uma analogia entre a conquista do leitor pelo narrador, criador de magias, e o mágico que encanta o público sob o arco íris gritando que era branco, e caiu no rio.
Eis - nos por fim chegados A Página em branco” (p.101) – último conto e fim dos contos. O mundo continua a existir depois da última frase. Doze personagens descem a encosta e ficam como que petrificadas nas pedras da calçada. Quais actores de teatro perambulam em busca dos vestígios de sentimentos, no vazio assustador da noite e na transparência do ar.
É este conto, uma espécie de chave de leitura do conjunto dos contos e e um revelador do narrador sentado na pedra donde se avista a eternidade, dividido entre o planalto e a cidade. Uma chave que abre para quem, como e porquê escrever contos cujas personagens são imagens que os espelhos da fantasia nos devolvem, seres vivos em suspensão no silêncio da rua que um homem solitário sobe e desce, como quem percorre os dias, decifrando, obsessivo, os pontos cardeais, sempre tocado pelos ventos loucos e por sons recorrentes.
3. O conto, narrativa de uma criação
Entre a palavra falada e a palavra escrita, entre o mito e a história, entre o fabuloso e o que se pretende verdadeiro e concreto, o escritor manipula o sagrado, o significativo, o exemplar , e constrói uma efabulação encantatória, intrigada e intrigante.
O conto é a narrativa de uma criação como diz Mircea Eliade. As palavras e sobretudo as frases, brincadas, e a construção frásica burilada como se de renda de bilros se tratasse, assumem um carácter de arquipotência no pensar metafórico e na conformação simbólica que se confunde com o poder dos deuses a que nada nem ninguém escapa.
No início, tudo surge unido, para logo a seguir se desconstruir e terminar no insólito que desconcerta qualquer lógica aparente, num processo imanente de reflexão sobre a condição humana no mundo, através do efeito sensorial dos aromas de flores (jacintos, violetas, etc), árvores, arbustos, ervas e sons ( toque nostálgico dos sinos, tinido compassado dos relógios, passos no asfalto ou nos degraus de pedra).
A leitura de cada um destes contos fantásticos que evocam a escrita de Hoffmann, mestre contista, feitos de comportamentos extremamente e estranhamente humanos, dá-nos a ver a magia suspensa, atemporal, em espaços e silêncios grávidos, numa interface entre fantástico e quotidiano, em que estão presentes múltiplos elementos: ironia e reinvenção de rituais mitológicos cíclicos, rotatividade travestida das personagens imagéticas, transfiguração fantástica do mundo habitual. Neles se misturam invariavelmente o fantástico, o maravilhoso e o estranho, à maneira de Kafka, ou então, próximo da lógica abdutiva de Edgar Allen Poe, o aflorar evanescente do suspense policial. Há uma livre expressão, camuflada na linguagem, de temas tabu travestidos numa linguagem sobrenatural, de acontecimentos inevitáveis, estranhos e imprevistos como a morte (suicídio ou o assassinato) denotando a relação da literatura fantástica com imagens submersas no inconsciente humano. Em suma, uma configuração simbólica em que se imbricam os níveis psicológicos, sociais e metafísicos
Os conflitos humanos como problemas que a consciência lógica e objectiva não explica nem alcança, com a incorporação de acontecimentos inusitados que nos pregam “sustos” inesperados diante de situações normais que de súbito se tornam inexplicáveis, pedem uma explicação transcendental. O problema da existência humana como uma questão metafísica para a qual o homem não encontrou ainda resposta satisfatória.E por isso continua escrevendo e lendo contos, como quem acrescenta pontos à linha da vida.
ISEP, 21 de Outubro de 2009
Maria Otília Pereira Lage
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