sábado, 25 de julho de 2009

A Invisibilidade


Acabei de levar um pontapé do homem embriagado que saiu do café. De manhã levei com uma pedra aguçada da criança que passou a caminho da escola. Prevejo que levarei com outra quando ela regressar, mais lá para o fim da tarde. É normal levar com uma cuspidela quando escarram o tabaco que vão guardando na garganta. Penso que muitas vezes não o fazem para me alvejar, mas porque sou como que invisível para eles. Já apanhei com restos de cerveja, latas vazias de estranhas bebidas, urina de uma dúzia de estudantes, água suja de lavar o chão, pontas de cigarros incandescentes. Não conto as vezes que fazem piadas à minha custa quando se sentam nas mesas da esplanada nos meses de verão. Em algumas dessas noites atiram-me pedaços de fiambre e tremoços. Não posso dizer que isso me desagrade.
Claro que nem sempre tive esta vida। A firmo que já fui amado como todos os mortais. Disso tenho memória e não faço por esquecê-lo. A minha mãe acarinhou-me, dos meus irmãos não recordo ódio ou rancor. Como todos, tive companheiros de aventuras, amigos fiéis nas descobertas do mundo; do perigo não se escondiam para me livrarem de apuros; paguei sempre com igual moeda, que o digam as cicatrizes que tenho na barriga. Deus foi benevolente comigo nas companheiras que me fez encontrar; a todas amei com as forças que Ele me deu. Digo-vos que delas recebi infinitos instantes de paixão desenfreada. Diziam-me em segredo que eu tinha nos olhos o segredo do tempo e seriam de mim escravas até à morte. Duas deles presentearam-me com filhos e promessas de devoção eterna. Vezes sem conta afirmaram que as marcas da minha irreverência e da minha particular maneira de viver se podiam encontrar nos olhos deles. A elas, o tempo depressa mas roubou e deles cedo perdi o rasto.

(...)

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