sexta-feira, 31 de julho de 2009

domingo, 26 de julho de 2009

Sinopse

Trabalhava sozinho desde que o seu mestre morrera, havia mais de quatro anos. Acompanhara-o desde criança pelos caminhos sem fim, perseguindo as feiras e as romarias. Com ele aprendera todos os truques que conhecia, a destreza com os dedos das mãos, o olhar enigmático com que devia enfrentar a multidão e o segredo de oferecer no instante certo o que os outros, sem o saberem, desejavam ver. O mestre ensinara-lhe que só com a magia os homens conseguiam compreender o mundo. Nessa verdade acreditava, era um Vendedor de Ilusões e disso decidiu fazer o seu modo de vida. Até surgir aquele dia de Inverno em que os alicerces do seu mundo haveriam de ruir. Tudo terminaria na primeira manhã de Abril.
No universo de O Vendedor de Ilusões o insólito e o fantástico passeiam-se de mãos dadas com a normalidade do quotidiano. Transformam-na numa realidade nova, enriquecida com aquilo que o nosso olhar procura insistentemente e tão raras vezes encontra. Perturbador, imprevisível e implacável é o lugar onde se movem as personagens deste livro. Como, afinal, é o mundo onde todos nos movemos.

O Súbito Frio da Tarde


Nunca esperei que isto me acontecesse. Muito menos desta maneira, tão rápida e cruel. Choca-me, deixem que lhes diga, a falta de maneiras do monstro que me pôs neste estado. Bem vinda ao maravilhoso mundo dos homens, dirão alguns.
Se bem me lembro (a minha memória enfraquece a cada instante que passa, na medida exacta em que este sangue pegajoso se espalha pelo meu corpo imaculado) fui comprada na manhã de ontem, na altura dos bons clientes, como sempre ouvi da boca das empregadas da loja: nessa hora em que ainda resistem os aromas frescos aos detergentes, o silêncio não tem que lutar contra os gritos das crianças e os corpos ainda exalam os perfumes cristalinos do primeiro banho. A pele do homem tinha o aroma dos sabonetes baratos, era possuída de uma rigidez de cobre e transpirava o hábito de se expor ao vento e às intempéries. Senti primeiro um certo desconforto, depois fiquei nervosa, desejei que me achasse demasiado cara para a sua (com certeza) magra carteira, e, por fim (não me perguntem porquê), e para mal dos meus pecados, dei por mim a ajustar-me ao seu corpo com todo o saber que acumulei durante tantos meses de espera. Abracei-o como o faria a mulher dos seus sonhos, e, sem falso orgulho, atrevo-me a dizer, emprestei-lhe a elegância que claramente não tinha quando entrou na loja. Espanto o meu quando me deixou aberta na medida exacta enquanto sorria para o espelho, e leviandade a minha de me ter nesse instante afeiçoado ao seu corpo, suspirando pela longa e feliz vida que me esperava. Não me devo enganar se disser que me salpicou uma inusitada ansiedade quando ele me despiu e entregou à empregada. Posso jurar por todos os bichos-da-seda que cheguei a desesperar durante a tarde em que me deixou abandonada na caixa de cartão e durante a noite em que me deixou estendida (coisa que fez com cuidado, é verdade) em cima de um velho sofá. Aos primeiros raios da manhã esqueci essa afronta e ofereci-lhe o meu brilho cristalino. O preço dessa vaidade é o estado em que me encontro.
O dia ainda mal nascera quando me vestiu de novo (juro que rejubilei quando senti o seu corpo transpirar uma alegria contida), aceitei, despreocupada, o acento do casaco sobre mim, reparei que o meu senhor se benzia ao sair do quarto e minutos depois rodávamos contentes pela auto-estrada.
Não sei durante quanto tempo viajámos। Tenho imagens fugazes de uma estrada que se foi tornando cada vez mais estreita e sinuosa e de a planície se transformar em montanhas temerosas. Recordo o sol branco e a impressão desagradável do suor a inundar-me e a surpreendente frescura da sombra onde parámos. Da casa minúscula saiu uma velha mulher, que após meia dúzia de passos se deteve, ofegante. Lembro com algum desgosto o abraço longo a que se entregaram (fui completamente amassada contra aquele corpo flácido que cheirava a coisas que nunca conheci e me deixou uma nódoa de gordura ao lado do terceiro botão), lembro os olhos húmidos da mulher, o bater acelerado do coração do meu senhor (a quem ela chamou com voz débil Meu Filho). Instantes depois ouvi pela primeira vez o seu nome, António. Entrámos na pequena sala que me pareceu ter sido limpa e arranjada nessa manhã, sentámo-nos à mesa coberta com uma toalha de linho puro e temi pela minha vida (que ingenuidade a minha!) quando o meu António se serviu de um copo de vinho tinto. Num velho relógio de sala ouvi bater o meio-dia e instantes depois doze badaladas num sino de igreja que nunca vi. Terá sido por essa altura que a toalha se encheu de pratos, talheres e travessas a transbordar de cozinhados com aromas intensos (respirei fundo quando o meu senhor me protegeu com um pano de cozinha lavado), e apareceram outras mulheres velhas com a mesma roupa escura e o mesmo aroma que desconheço. Todas beijavam e abraçavam o senhor António e fiquei a saber que iríamos ficar neste lugar uns quatro ou cinco dias. Ouvia-se ao longe o ruído de uma motorizada quando ele perguntou a uma das mulheres quando chegava da França uma tal Maria, no silêncio que se seguiu tive a certeza que o coração dele voltava a ficar irrequieto e depois se acalmava ao ouvir as palavras Hoje à Tarde (e me arranjava o colarinho e alisava nas mangas).Hoje à tarde! Que estranho sentido têm estas palavras, e que vazio fica quando as repito com as poucas forças que me restam! Como vazio ficou de repente este lugar! Da televisão pregada junto ao tecto ainda chegam sons sem harmonia; parece-me que alguém não fechou completamente a torneira por detrás do balcão. Chegam-me vozes lá de fora, mas não consigo perceber o que dizem. Também me pareceu ouvir de novo, ao longe, a motorizada. Começaram a chegar as moscas. Saberão elas quantos bichos-da-seda morreram para fazer este tecido?

(...)

A Cortina do Mundo



Ao romper da manhã os homens encontravam-se no fundo da encosta. Eram sete, espalhados ao longo de uma linha cortada pelas rochas, urzes e giestas queimadas pelo incêndio do último verão. Caminhavam devagar, calculavam com precisão o lugar onde iriam colocar os pés, todos traziam uma espingarda a tiracolo e um cantil preso à cartucheira. Os dois cães seguiam a algumas dezena de metros à frente, invisíveis entre as fragas, as giestas altas e a sombra dos pinheiros.

O velho acordou de sobressalto, esfregou os braços e arrastou-se até à luz. Reparou que não havia vento nem pássaros no céu. Olhou o fundo da montanha, a nascente, onde havia ainda o nevoeiro, e, por baixo dele, as casas. Tentou recordar as horas que demorara a chegar até ali durante a noite, mas era difícil, agora, à luz do dia, encontrar na memória pontos de contacto com o que acontecera entre as trevas. As distâncias mudavam com a luz, sempre assim fora. Mas era certo que correra, caíra e rastejara durante várias horas, e, por fim, encontrara aquele buraco entre as pedras onde não chegava o vento. Não fizera lume porque não sabia a direcção para que estava voltada a entrada. Usara o sobretudo como manta e sentara-se. As dores ainda eram suportáveis. Adormecera pouco depois.
A dor obrigou-o a dobrar-se até aos joelhos e a procurar o tornozelo sob a meia rasgada. Parecia uma bola prestes a rebentar e era dali que saíam as dores maiores; as outras apareciam a espaços. Olhou à volta: no espaço que conseguia divisar não havia sinais de ramos caídos no chão, ou de uma árvore de onde pudesse cortar algum. Só havia a terra e as pedras, a encosta íngreme até ao nevoeiro, a Nascente, a falésia lisa até às águas do rio, do outro lado. Voltou a entrar no buraco e tacteou até encontrar o sobretudo. Arrastou-se de novo até à luz do sol, perscrutou o espaço até onde o olhar permitia e retirou do bolso interior a caixa de cartão.
Pousou-a no sobretudo estendido em cima dos joelhos. Tinha dificuldade em desapertar o cordel que a envolvia (um golpe atravessava-lhe a mão direita e nascia dele uma ardência que já se espalhava pelo braço). Por fim conseguiu abri-la e um olhar bastou para concluir que não faltava nada. Moveu-se ligeiramente para acomodar as costas contra uma rocha, observou de novo o céu e as montanhas, espreitou por cima do ombro o silêncio que o nevoeiro ainda encerrava no fundo da encosta, fechou os olhos por instantes e abriu-os de novo para o interior da caixa.
As suas coisas. Bastava tocar-lhes com os dedos para percorrer os anos do passado. Havia alturas em que o fazia só com o olhar, se estivesse mais cansado, ou mais desinteressado de tudo, não sabia. Em horas incertas, sentava-se à sombra de um plátano, ou resguardava-se do vento atrás do muro mais próximo, abria a caixa e observava as imagens cristalizadas naquelas coisas. Alturas havia em que passava semanas ou meses sem o fazer. Não sabia porquê. O importante era que a caixa, ainda que fechada dias a fio e amarrada com o cordel, tinha de estar sempre consigo, no bolso do sobretudo ou na saca que prendia ao cinto nos dias de calor. Um dia deixara-a escondida entre as pedra, no pinhal a sul da aldeia. Era uma manhã de primavera e sabia-lhe bem mergulhar nas águas do ribeiro. Mas tivera de voltar a correr, a vestir-se enquanto corria porque um pensamento sombrio quase o afogava com o peso que subitamente lhe nascera no peito. E tão rapidamente como nascera, essa coisa misteriosa desvanecera-se quando voltou a ter a caixa entre as mãos. A partir desse dia nunca mais se separou dela – as vezes em que a chuva fustigava os caminhos ou o calor o obrigava a imergir o corpo nas águas do ribeiro ou no primeiro tanque de rega que encontrasse, a caixa encontrava o seu abrigo inviolável dentro dos dois sacos plásticos da loja de fruta da vila.
Voltou a olhar por cima do ombro o vale ainda escondido pelo nevoeiro। A impressão de um ruído distante fê-lo soerguer-se e perscrutar o espaço a toda a volta, mas só encontrou o silêncio da manhã e voltou a acomodar-se contra a rocha. A dor maior obrigou-o a cerrar as pálpebras; quando se desvaneceu havia pontos cintilantes à frente dos olhos. Assaltou-o a vontade de mergulhar o rosto numa água gelada e beber dela até à exaustão.Tudo começara com a sede que tivera no dia anterior, ou com a febre de inferno que não o largava há quatro ou cinco dias.

(...)

Uma Borboleta



- Viste a borboleta, Amélia? Fico sempre nervosa quando não sei onde ela está
- Acho que não foi há muito tempo que passou por aqui. Mas agora não a vejo.
- A Glória acabou de passar. Deixa sempre esta corrente de ar. Deve ter entrado na cozinha.
- …
- Sentes o aroma das violetas, Amélia?
- Sim, há um perfume que vem do lado das laranjeiras. É com certeza o vento que o traz. Mas não é de violetas, é dos jacintos, que a esta hora do dia ficam irrequietos com o vento que desce da montanha.
- Sempre preferi o cheiro das violetas. Lembram-me o perfume que a mamã punha quando saía.
- O vento desce da encosta e fustiga os jacintos contra as paredes da casa e o perfume deles escoa-se pelas frinchas das portas.
- Então já é o fim da tarde. É sempre a essa hora que o vento desce da encosta em direcção ao rio.
- A Glória deve estar a tratar do fogo. Fá-lo sempre antes do cair da noite, desde que não seja Julho ou Agosto.
- Talvez ainda seja Maio, ou Abril.
- Ainda te importas, Lucília?
- Com o quê?
- Quando sentes o perfume das violetas é porque estás a pensar naquilo.
- Nem sempre. Às vezes aparece-me e não estou a pensar em nada.
- …
- Ma se o cheiro se prolongar por algum tempo começo a pensar, como agora. Abrem-se as portas desse dia e eu não posso fazer nada para o impedir. Os dias são tão iguais, agora. O que mais me custa é a ausência das cores. Não se consegue ver o tempo a passar. Ainda achas que eu tive culpa?
- …
- O teu silêncio diz-me que sim.
- Deve ser com certeza o cair da noite. Estes ruídos são os da Glória a partir os ramos para o lume. Tu protestavas sempre com a lentidão com que ela fazia as coisas.
- Contava-nos histórias à volta da lareira quando a mamã e o papá não estavam. Uma vez disseste-lhe que querias que o tempo parasse. Foi nessa noite que avariaste o relógio da sala. Agora também me custa o silêncio dela. Foi nas férias da Páscoa que aquilo aconteceu, não foi?
- Era um dia sem nuvens no céu. O sol nascera tão cedo que já me batia na face quando acordei. Já havia o aroma do café pela casa toda. O papá e a mamã tinham saído para a vila por causa dos nossos vestidos de comunhão.
- E havia o aroma da torta de noz e do bolo de framboesa। Quando acordei, foi a primeira coisa que senti.- Eles só chegaram depois, quando o sol já ia por cima dos carvalhos. O ruído que faziam era tão penetrante que o senti por baixo do vestido à volta do umbigo. Foi nessa altura que gritei e corri para a janela da sala.

(...)

Amnésia

Era uma hora incerta do cair da noite aquela em que Júlio Ferreira caminhava pela rua principal de Vila Azul. Não o surpreendiam os sinais habituais do fim do dia (o lavar do soalho as lojas, o virar de cadeiras em cima das mesas de um ou outro café, o multiplicar dos faróis dos automóveis e dos vultos apressados). Não o impressionavam esses sinais nem o facto de surgirem com extraordinária clareza as badaladas do sino da igreja. Tudo lhe era familiar e aconchegante. Caminhava com passos lentos, as pontas dos pés exageradamente voltadas para fora, os ombros ligeiramente encolhidos e as mãos nos bolsos do casaco como sempre fora o seu hábito. Nos últimos minutos um pensamento o inquietava: não sabia de onde vinha, por mais esforços que fizesse para recordá-lo. E com esse desconhecimento inconcebível coexistia a certeza de estar de regresso a casa.
Enquanto se ia esgrimindo o melhor que podia com essa inoportuna confusão, não conseguia deixar de reparar em pormenores das coisas à sua volta que, embora vulgares, pareciam esconder algo de extraordinário que nunca se revelava. Foi assim que se deteve na palidez dos candeeiros da rua e nos reflexos dessa luz no metal dos automóveis, no tom azulado dos vapores condensados nos vidros das montras e no orvalho no asfalto na estrada. Decidira há instantes atrás que o mais provável seria sofrer de uma amnésia passageira, provavelmente causada por uma fortuita pancada na cabeça. Se assim fosse, como esperava, em breve tudo voltaria a ser como antes: a consciência do passado no seu devido lugar a dar sentido ao futuro que não deixaria de se aproximar (nele estaria escrito a sua entrada em casa, onde o esperava a mulher e as filhas e o temperado jantar). Saíra porventura para tomar um café ou comprar tabaco e uma amnésia levara-lhe os últimos minutos de vida. As últimas horas, vendo bem, e os últimos dias, pois todo o passado lhe fugia à medida que se concentrava nele. Talvez fosse por esse motivo que se sentia um tanto ou quanto trôpego a caminhar – toda a gente sabia que as pancadas na cabeça podiam dar em coisas assim.
Reparou que, para além do bolso das calças onde chocalhava a chave de casa presa à sua velha corrente, todos os outros se encontravam vazios – facto que comprovou por duas vezes, percorrendo todas as cavidades da roupa, sem parar de caminhar e com o olhar pousado na esquina ainda distante onde teria que virar à esquerda। Era verdade que não possuía um centavo, um pedaço de cordel ou uma tampa de cerveja ali caída por acaso. Nem o tal maço de cigarros – porque ele fumava, disso conseguia lembrar-se. Tinha os bolsos lisos e limpos como os de um fato acabado de chegar da lavandaria.Parou para se dobrar e apalpar a bainha das calças – não tinham nem um grão de poeira e todo ele cheirava a naftalina, disso não havia dúvida; e os sapatos engraxados, luzidios como a estrada.

(...)

Os Jacintos Queimados


Em Alexandra, há mais de dez anos que os homens procuram o livro desaparecido no dia em que o barbeiro se enforcou. Entretanto, murmuram as histórias que dele ouviram contar, pois acreditam que, na hora em que as esquecerem, o sol se voltará a esconder e não se distinguirá a noite do dia. Todos, no primeiro domingo de Junho, à porta das sete mulheres desaparecidas, cortam os jacintos rente ao chão e queimam-nos no meio da praça em quieto silêncio. Dizem que o fazem porque assim tem de ser.


Há muitos que ainda recordam o aroma dos jacintos que tão cedo chegou nesse dia: o vale parecia caído num gigantesco caldeirão onde fervilhava a inebriante essência; todos levantavam o rosto para o céu, dilatavam as narinas e tentavam descortinar o ponto cardeal onde nascia o insinuante vapor. Não demorou muito que todos concluíssem vir de oeste a leve brisa, com certeza descendo a montanha e atravessando o Pinhal Grande.
Por volta das dez, um tal António teria encontrado o barbeiro com inédita boa disposição matinal, tendo-lhe presenciado um sorriso largo enquanto lhe ensaboava o rosto e olhares parados na rua onde àquela hora não passava ninguém. A maior surpresa aconteceria, acreditassem ou não, quando o barbeiro começou a falar, não do tempo ou das notícias da bola, o que já por si seria coisa rara, mas a contar o que só ao fim da primeira dúzia de frases o tal António percebeu tratar-se de história inventada. Desfeita a barba e lavada a cara, ainda sobreveio a pergunta se de tal história o barbeado tinha gostado, e ele, entre o pasmo e a pressa de aquela coisa inaudita vir contar, disse que sim com a cabeça, mas a verdade é que nada percebera, e, como todos concordaram, não se gosta do que não se entende. O barbeiro João da Silva dera em doido foi o que ficou a saber-se no café Central, e a verdade é que a dita loucura acabaria por ser comprovada ainda antes do almoço pelos dois ouvintes ao balcão, apressados a tratar dos pêlos ainda imberbes do rosto, não fosse ela coisa passageira e por isso indigna de ser espalhada aos quatro ventos. Mas era verdade a loucura do homem, pois ele em tudo repetiu a receita dada ao António, acrescentando um brilho nos olhos quando fazia os tais silêncios com o olhar parado no meio da rua.


A mulher foi vista pela primeira vez ainda antes do meio-dia, segundo afirmaria a mulher do coveiro। Ajudava ela o marido no corte de ervas à volta das campas, levantava a cabeça para limpar o suor da testa no instante em que o sino dava o sinal das onze e trinta e foi então que viu o vulto que se aproximava pelo caminho do Pinhal Grande. Ainda o sino não se calara e já uma coisa dentro dela lhe segredava ser de mau prenúncio aquela figura, duvidou até se não seria falsa aquela hora, mas somente o sino a anunciar a chegada de um estranho à terra, e por isso gritou ao marido que lhe dissesse as horas e a prova provada da certeza do seu prenúncio foi o seu homem que nunca lhe mentiu ter respondido, depois de pousar a enxada e tirar o relógio do bolso, que ainda não era meio dia.Vestia de negro e assim vestiria todos os dias em que foi dada como viva, da mesma cor da noite escura eram os seus cabelos compridos, todos lhe reparavam na forma como caminhava e que antes parecia um deslizar, como se de gelo fosse o chão que pisava e não de terra fervente, porque eram de Verão escaldante aqueles dias; da cor alva era a pele do rosto e dos finos dedos das mãos; com certeza mulher de fidalgo, afirmou-se em frente ao café; de onde seria e ao que viria se outra coisa não fez nesse dia que andar rua abaixo e rua acima, não se detendo em lado nenhum e nada tendo perguntado, até deixar de ser vista pela hora do crepúsculo, desaparecida ela e o livro que trazia numa das mãos e ninguém tinha visto abrir. E a cor dos olhos, que cor era aquela que nunca se tinham visto olhos assim, a pergunta repetida à hora da ceia, verdes da cor da erva nas primeiras manhãs de Abril, ou da cor do musgo gelado nas manhãs de Dezembro, e então uma criança, não se lembrando onde ouvira ou lera a palavra, mas com a certeza de ser a palavra pedida, disse olhos garços. E assim ficou esse dia, o chegada de uma mulher de olhos assim e da certa loucura do barbeiro, que ainda foi visto já noite alta, vagueando pelas ruas com o tal brilho nos olhos.

(...)

sábado, 25 de julho de 2009

O Testamento da Velha Senhora

Era o cair de uma tarde de Abril. A velha senhora aspergiu com água as brasas da lareira, desligou o rádio, percorreu todos os compartimentos da casa e fechou as janelas, destrancou a porta que dava para a rua, apanhou uma casca de laranja esquecida em cima do aparador. Depois voltou a entrar em cada um dos compartimentos e deixou em cada um deles um olhar vagaroso. Por fim, lavou o rosto e os braços, penteou-se com vagar, da arca aos pés da cama retirou um vestido azul com aromas de madressilvas, alisou-o com as mãos, vestiu-o com esforço, olhou pela última vez o quarto, encostou a porta devagar e encaminhou-se para a sala. Da mesa retirou uma cadeira, arrastou-a para junto da janela, sentou-se, cruzou as mãos sobre o regaço e lançou o olhar para um ponto distante do vale. Caía nessa altura uma neblina com tons do mesmo azul do vestido. Durante alguns instantes não se ouviu qualquer som e a velha senhora pareceu ter parado de respirar. Então, ouviu-se um longo suspiro e depois as primeiras palavras, que pareceram ecoar sobre todo o vale e penetrar na neblina distante. Seguiram-se as frases soltas, desligadas umas das outras, ou presas por fio que só ela conhecia. Um ritmo subtil parecia segurá-las:



as agulhas do frio e o cheiro da ardósia quando a manga da camisola apaga o que foi escrito

o ladrar dos cães nos nevoeiros de Novembro

o cheiro da pólvora e os gritos. A luz da tarde nas baionetas, um chapéu de soldado caído na rua

a chuva e o sol misturados na rua da igreja num dia de Janeiro

o bater das cinco da tarde e o sangue morno entre as pernas, a primeira vez

o luar nas costas dele, a primeira vez

o véu e a grinalda, os grãos de arroz numa tarde de Junho

a bicicleta do carteiro e os envelopes com as cartas de África

a carta do governo na mão do carteiro, o envelope branco, as letras negras

o uivo dos lobos numa noite de Janeiro

os domingos de ramos, a luz do sol nos ramos de oliveira

o ferver do açúcar na panela de cobre e o vento de Outubro nas árvores

os olhos verdes do homem que tirava rosas do chapéu

as mãos do homem de olhos verdes e duas pétalas de rosa no meu peito

o homem de olhos verdes a desaparecer no fim da rua

o canto das cigarras e o perfume das tangerinas

as manhãs de Março e as tardes de Setembro

o cair da noite em Agosto

uma andorinha

o céu

uma pena de ave e o rio, a cor da chuva, o gelo das pedras, os dedos na luz do sol, a pele, a claridade da sombra

este silêncio

Disse a última frase, respirou fundo e aconchegou o corpo à cadeira. Depois foi descendo o olhar do ponto distante onde o pousara, até à copa das árvores da rua, ao parapeito da janela, aos dedos das mãos.Só então fechou os olhos.

Montes Brancos



É a mesma tarde de sempre, o mesmo vale entre as colinas, os montes distantes onde os cumes parecem elefantes. Existe o ribeiro de terra lamacenta e a estrada branca que corta a encosta. Ao lado da estrada existe a casa, as telhas ondulam ao sol das três da tarde, algumas estão partidas. Nas traseiras da casa está um automóvel assente em tijolos, uma boneca sem braços entre duas pedras, pneus dispersos pelo chão, grades de plástico encostadas à parede. Está sempre um cão a farejar a terra e um bando de aves, penso sempre que são perdizes, a levantar da erva seca. As duas árvores na margem do ribeiro são a única sombra.
Um carro desce a encosta. Segue-o uma nuvem de pó que vai morrendo à medida que se dispersa no ar. De quando em quando acontecem minúsculas explosões de luz na superfície do automóvel. Uma perdiz afastou-se das demais, pairou sobre a curva do ribeiro, fez um círculo largo ascendente e voltou ao bando. O cão esticou o corpo, enterrou a cabeça entre as patas dianteiras e imobilizou-se. O bando de perdizes subiu alto no céu e o cume branco dos montes distantes ficou por detrás dele. Mudou de forma, ficou uma mancha negra, a diminuir, a desaparecer.
Um insecto, talvez uma libelinha, passou rente ao pescoço o cão. O cão fez um movimento rápido com a cabeça e voltou a imobilizar-se. O carro vai diminuindo a velocidade e detém-se em frente da casa. A nuvem de perdizes voltou a mudar de direcção, traçou uma linha negra no branco dos montes e começou a crescer.
Já não há vestígios da nuvem de pó que perseguia o automóvel. Nenhum ruído atravessa o ar, o cão continua imóvel, o bando de perdizes desceu sobre o ribeiro, fez um voo rente ao fio de água e desapareceu na sombra das árvores.
Há outro carro a descer a colina. A nuvem de pó que o persegue demora mais tempo a desvanecer-se.
Duas perdizes abandonaram os ramos, sobrevoaram o ribeiro e foram pousar na outra margem, entre os troncos caídos. O cão levantou-se, sacudiu o corpo, aproximou-se do carro imóvel e afastou-se em direcção à casa. Sentou-se à entrada com a cabeça voltada para a grande nuvem que desce a colina. Um lagarto atravessou a estrada e desapareceu entre as ervas secas.
A mulher saiu do carro, o ruído da porta ao fechar-se assustou as perdizes escondidas nas árvores, algumas fizeram um voo curto e regressaram à sombra. A mulher está vestida com a cor da terra da estrada, traz uma carteira ao ombro que, por duas vezes, reflectiu a luz do sol. Pára quando chega ao outro lado da estrada e olha para a nuvem de pó que se aproxima. Foi nesse instante que afagou o ventre com ambas as mãos. Depois olhou para os montes distantes e desapareceu dentro da casa.
Uma das perdizes da outra margem regressou à sombra das árvores. O cão procura qualquer coisa entre a erva.
O segundo carro foi parar longe, depois da casa. O homem saiu e o ruído da porta a fechar-se fez levantar o bando de perdizes – elevou-se no ar e começou a diminuir ao encontro do cume branco dos montes.
O homem atravessou o caminho quando a nuvem de pó que o perseguia desapareceu. Entrou na casa.
O bando de perdizes é uma bola a saltitar, alonga-se e volta a ser uma bola. É uma linha escura que corta o branco dos montes distantes.
Não há sons. O cão deitou-se na erva. Não há nuvens de pó no caminho.
Da casa veio um ruído, talvez um grito

(...)

O Labirinto do Velho Guerreiro


- Cá estamos as três, nesta eternidade, sentadas à fogueira neste monte gelado, amaldiçoadas para sempre.
- Odeio este cabelo branco com que nascemos e esta pele da cor da neve. A maldição é termos vindo ao mundo com este aspecto de velhas à beira da morte.
- E termos um só olho para as três. E um só dente. A nossa maldição é essa.
- Gostei que um homem nos tivesse chamado cisnes, um dia. Foi um romano de nome Horácio, há muitos séculos. Deu-lhe jeito esse nome para compor um verso do seu poema.
- Onde está ele, o olho? Qual de vós as duas o tem?
- Tenho-o eu mas não to dou. Quero continuar a ver o que vejo.
- O que vês tu? Tens de nos contar, ou morremos as duas de tédio!
- Não morreis porque somos imortais. O que tendes é inveja de eu ver o que vejo.
- Se não dizes o que vês, hoje não terás o dente para comer.
- O que vejo tira-me a fome.
- …
- …
- Vejo uma terra, vejo um vale, vejo montanhas altas que a separam do resto do mundo. Longe das casas há uma plantação de maçãs e o sol do fim do verão.
- Grande coisa que vês!
- Por mim, podes continuar com o olho.
- Vejo um homem.
- Um homem!
- Vês um homem!
- Vejo um homem envelhecido. Caminha cansado entre as filas de macieiras. Atrás dele seguem outros homens. São eles que vão apanhar as maçãs. Mas é o homem velho que me interessa.
- Que interesse pode ter um homem velho?
- No fim da fila caminha uma mulher. É uma mulher nova. A cor da sua pele diz que nasceu em terras da África distante. Move-se com dificuldade. Cobrem-na várias peças de roupa. Parece gorda, mas esconde um segredo.
- Um segredo!
- Dá-me o olho, quero ver!
- Não vos dou o olho nem vos conto o segredo. Só mais tarde. De quando em quando a mulher leva as mãos aos rins. O homem velho continua a caminhar, indiferente. É de manhã bem cedo. Vai começar o último dia da colheita.
- Diz porque te interessa o homem velho.
- Porque a vida dele vai mudar em breve, e a causa disso há-de ser o segredo da mulher. Mal posso esperar para ver.
- …
- Roubaste-me o olho Maldita sejas!
- A mulher que caminha atrás dos homens nasceu nas savanas a norte do rio Zambeze. Tens razão, leva um segredo com ela. Mas se eu aproximar e rodar o olho de uma maneira que nenhuma de vós sabe fazer adivinho o passado do homem velho que caminha à frente. Também ele esteve nessas terras distantes e aí foi guerreiro. Matou muitos homens. E também ele tem um segredo. Tereis de adivinhá-lo mais tarde. Desde que regressou da guerra nunca mais disse uma palavra. Agora explica por gestos o que os outros homens têm de fazer. Não o sabeis, mas é um homem sozinho. É o que acontece aos homens que perdem as palavras.
- …
- Ou continuas a contar, ou nenhuma de vós terá hoje o dente para comer.
- A fome não me incomoda.
- Há mais de quarenta anos que regressou. Quase meio século sem dizer uma só palavra. Quem o conhece diz que lhe roubaram a alma. Todos os que viviam perto dele o abandonaram. Ninguém quer viver perto de um homem sem alma.
- Chega de passado, queremos ver o que se está a passar. Ou contas, ou entregas o olho.
- Não sabereis, infelizes, que se não conhecerdes o passado nunca entendereis o segredo do presente? Mas entrego-vos o olho. Aí tendes, é de quem o agarrar.
- É meu!- Agora tens o olho e o dente! Isso nunca aconteceu!

(...)

A Invisibilidade


Acabei de levar um pontapé do homem embriagado que saiu do café. De manhã levei com uma pedra aguçada da criança que passou a caminho da escola. Prevejo que levarei com outra quando ela regressar, mais lá para o fim da tarde. É normal levar com uma cuspidela quando escarram o tabaco que vão guardando na garganta. Penso que muitas vezes não o fazem para me alvejar, mas porque sou como que invisível para eles. Já apanhei com restos de cerveja, latas vazias de estranhas bebidas, urina de uma dúzia de estudantes, água suja de lavar o chão, pontas de cigarros incandescentes. Não conto as vezes que fazem piadas à minha custa quando se sentam nas mesas da esplanada nos meses de verão. Em algumas dessas noites atiram-me pedaços de fiambre e tremoços. Não posso dizer que isso me desagrade.
Claro que nem sempre tive esta vida। A firmo que já fui amado como todos os mortais. Disso tenho memória e não faço por esquecê-lo. A minha mãe acarinhou-me, dos meus irmãos não recordo ódio ou rancor. Como todos, tive companheiros de aventuras, amigos fiéis nas descobertas do mundo; do perigo não se escondiam para me livrarem de apuros; paguei sempre com igual moeda, que o digam as cicatrizes que tenho na barriga. Deus foi benevolente comigo nas companheiras que me fez encontrar; a todas amei com as forças que Ele me deu. Digo-vos que delas recebi infinitos instantes de paixão desenfreada. Diziam-me em segredo que eu tinha nos olhos o segredo do tempo e seriam de mim escravas até à morte. Duas deles presentearam-me com filhos e promessas de devoção eterna. Vezes sem conta afirmaram que as marcas da minha irreverência e da minha particular maneira de viver se podiam encontrar nos olhos deles. A elas, o tempo depressa mas roubou e deles cedo perdi o rasto.

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O Desejo


Repito que é refrescante esta água e este silêncio. Agora já nada me preocupa. Não sei se recuperei a fé, nem se Deus me perdoou. A corrente de frio que passa por mim lembra-me a brisa que sempre corria neste lugar. Ainda me acodem os instantes do dia em imagens soltas, porventura trazidas pela brisa que sopra sempre por aqui.

O povo notou o desaparecimento da capela da Nossa Senhora da Graça pouco depois do lançamento dos foguetes. Seria por volta das sete da manhã. Pela janela aberta do quarto chegou-me o alvoroço que já esperava e temia. Não demoraram muito a ouvir-se as primeiras pancadas na porta. Demorei o tempo que pude para me arranjar e sair. Foi imediato o cerco que me fizeram, o desespero com que me apertaram os braços e apontavam o cume da montanha. Não estranhei o medo que havia nos olhos de todos. Eu mesmo o sentira horas antes. Apesar de ter sido meu, o desejo.
Não demorou muito que um pesado silêncio abafasse o burburinho e todos se convencessem de que eu estava tão surpreendido como eles. Acompanhei-os no olhar pasmado para o cimo do monte, no devaneio pelos cumes das montanhas à volta e na busca da posição do sol, na dúvida sobre a realidade do mundo em que se encontravam; o meu olhar regressava como o deles ao ponto de partida: o monte, a estrada íngreme, as escadas e o muro de pedra, as grades de ferro, o coreto onde as bandas tocariam, os fios com os triângulos coloridos ao vento. O vazio, uma cabeça cortada, um corpo adormecido num silêncio aterrador, era o que parecia o monte sem a capela.
Era cedo para se darem conta do desaparecimento dos dois jovens e disso dei graças a Deus। Mas soube que era uma questão de tempo, poucas horas. À luz do dia sentia agora a tempestade que me fustigara no início da madrugada. Vi com terror que era íngreme o caminho que me restava percorrer para o vazio dentro de mim.

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A Febre


Agora estamos muito bem na grande cidade de Paris. A mim, agradam-me particularmente as margens do Sena e percorro-as de uma ponta à outra sempre que posso, o que não é difícil, dada a quantidade de pessoas e cães que por ali passeiam. Eu prefiro as mulheres – além do perfume que nunca se esquecem de usar, o aroma da pele é mais delicado, e nós gostamos disso, caso não saibam. É claro que também existem razões de ordem prática nessa preferência, porque se há coisa que nós não somos é suicidas; a vida é demasiado curta para lhe apressarmos o fim: as mulheres usam mais peças de roupa, o que, tornando o passeio agradável saltando de uma camada para outra, protege-nos até chegarmos ao delírio do aroma da pele, ou do cabelo. Agradam-me habitualmente as loiras – parece que cavalgamos o mundo num corcel de ouro.
É verdade que o Inverno está a chegar, e, com a quantidade de mortes que têm existido, é provável que a nossa vida venha a sofrer algumas privações. Mas aprendi há pouco que esta ainda é a cidade da luz e aqui os turistas nunca faltam.
Eles também estão bem e fico contente com isso. Afinal, é a eles que devemos estes tempos de bonança. Sei que estão juntos, os corpos sempre unidos pelos braços ou pela boca, quando passeiam, e que ele se continua a meter dentro dela quando estão sós. Ele sabe poucas palavras de Francês e ela umas quantas de Português. Murmuram um ao outro o que vão aprendendo na outra língua. Os pais dela ainda estão internados no Grande Hospital. Talvez a mãe sobreviva. O amor deles parece protegê-los de tudo. Tenho pena de nós não sabermos o que é isso do amor. Chego a pensar, pelo que vejo, que com ele seríamos indestrutíveis.

Mas não nos podemos queixar, agora que a nossa vida melhorou tanto। Às vezes, não sem uma certa nostalgia, é verdade, recordo os tempos em que vivíamos nesse vale escondido entre as montanhas. Éramos poucas, talvez nem chegássemos às duas dezenas. Ouvi dizer que a nossa família veio de terras distantes de que desconheço o nome. Também desconheço como fomos ali parar. Eram tempos de fome e monotonia – um cão vadio de quando em quando, uma raposa, uma ou outra vez homens e mulheres, quando o nosso senhor (gosto de lhe chamar assim, agora que estamos tão bem) nos levava à aldeia. Montávamos no Fiel, subíamos para a carrinha e lá íamos nós. Voltávamos já de noite, satisfeitas. Eram dias de festa, poucos, porque o nosso senhor gostava de estar sozinho nos montes. É verdade, tão novo e tão só, e tão especial que nenhuma de nós entendia. Explico: não podemos com o seu sangue; uma simples picada enquanto ele dormia cheguei eu a experimentar por duas vezes e nem lhes digo nem lhes conto a má disposição. Jurei que nunca mais e as outras também. Eram assim esses dias, um a seguir ao outro, iguais, dormentes até à exaustão.

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O Convite


O que mais lhe custara havia sido escrever os convites, ou as ordens, melhor dizendo. Vinte e quatro, cada uma com o seu texto próprio e o nome do destinatário bem explícito no meio das frases para que não existissem dúvidas de que a mensagem era pessoal. Consultou o relógio de ponteiros na parede do fundo: agora via melhor do que nunca, havia uma minúscula mancha castanha sobre o ponteiro das horas e faltavam cinco minutos para as nove da noite. Provavelmente iam chegar todos ao mesmo tempo; até conseguia imaginá-los a combinar isso mesmo – a companhia dá-nos a ilusão de força, ou cobre com uma manta a miserável cobardia.
Demorara vários dias a escrevê-los porque só a lentidão extrema lhe permitia desenhar as letras de forma legível, e, acima de tudo, manter alguma aproximação à caligrafia que sempre fora a sua e os destinatários conheciam na perfeição. Mas conseguira, estava feito, os vinte e quatro cartões escritos e metidos em envelopes fechados, um nome em cada um deles, todos deixados em cima da mesa do vestíbulo, e uma ordem adicional à criada para que os metesse no correio nesse mesmo dia, porque a sua voz alterara-se com uma velocidade surpreendente nos últimos dias e transformara-se em algo para o que ainda não conseguira descortinar um nome. A escolha da cor violeta para os envelopes fora um capricho, nada mais. Mas acentuava o mistério, e isso agradava-lhe.
Aproximou-se de uma das janelas da parede Oeste. Sempre fora a sua vista preferida, com as copas das laranjeiras a marcarem o fim do jardim, o riacho que no fundo da encosta encontrava o rio, e depois as montanhas, que no cair das tardes de Outono se cobriam com uma névoa azulada. Há muito que se encontrava ali sozinho, sem que ninguém o visse, desde o fim da primavera, se a memória ainda funcionava como dantes. Conseguia sentir o vento que àquela hora fustigava os pinheiros e as giestas, apesar da escuridão e do isolamento perfeito que a casa sempre tivera. E sentia cada vez mais forte o apelo por esses grandes espaços. Mais um par de dias, talvez, e partiria. Mas antes eles tinham de vê-lo. Esse seria o momento solene da noite, o seu maior prazer.
Com um movimento brusco esmagou a pequena aranha que corria sob a secretária. Porque fizera aquilo? Podia partir simplesmente, agora que a transformação se consumara e o mundo se adivinhava outro. Mas ele nunca fora homem de deixar dívidas por pagar, e não iria fazê-lo agora que deixara de sê-lo.
A verdade é que havia vários motivos para ter inventado aquele banquete। Se havia coisas que aprendera muito bem, era que no mundo dos homens nada era simples, e quando se dizia que determinada causa provocara tal acontecimento, era porque se retirava do conjunto infinito de causas a única que, conhecida, fazia sentido, e que, tantas vezes, não era a mais importante. Além disso, os homens não se davam bem com a multiplicidade e tendiam a tudo resumir. As coisas ou estavam certas ou estavam erradas, um comportamento ou era bem ou era mau, e assim por diante. Fora sempre assim com os homens que conhecera. Mas a verdade é que ele estivera sempre acima dessa redutora maneira de olhar o mundo.

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O Sonho de Sócrates



No tempo que me resta antes que a pedra seja de novo lançada para longe e eu tenha que correr como um relâmpago atrás dela, tentarei recordar outra vez o meu último sonho Tenho de voltar sempre ao início, porque não encontro outra forma de compreender o instante inominável em que estou prestes a cumprir a minha heróica missão, ouço gritar o meu nome e sinto com uma pena indizível que é o meu sangue que começa a correr.


Ele chega ao vale numa tarde de Novembro, pouco antes do cair da noite. Ao fim de algum tempo todos corremos ao seu encontro. Afinal de contas, há muito que ninguém vê um forasteiro entrar no nosso reduto – não porque o não desejemos ardentemente, mas porque, como é do conhecimento de todos, nos encontramos aprisionados. Relembro com traços rápidos os contornos do nosso cativeiro. Os pormenores que omito são irrelevantes. Interessa-me a ligação subtil que existe entre as coisas e assim penso que deva acontecer com todos os outros.
A única saída do nosso vale era pelo trilho sinuoso ao longo do Desfiladeiro dos Ventos. A escolha daquele lugar pelos nossos antepassados fora sábia quando fugiam das hostes bárbaras que sempre os perseguiram; revelou-se imprudente com o passar do tempo – já ninguém recordava o dia preciso em que Cérbero, o homem monstruoso, se apoderara da entrada do vale. Dizia-se que o homem maldito fazia uma pergunta a quem se aproximasse da boca do desfiladeiro e matava quem não lhe desse a resposta verdadeira. Perderam-se no tempo os nomes dos que, por uma razão ou por outra haviam tentado sair. Pensava-se, embora ninguém o tivesse ainda presenciado, que o mesmo aconteceria a quem no vale quisesse entrar. De quando em quando, um temerário aproximava-se da ligeira elevação de onde se divisava o abrigo do homem e contava como estava crescida a pilha de crânios dos nossos semelhantes. O medo voltava então a apoderar-se de nós, não de forma visível, mas na maneira silenciosa e transbordante de orgulho com que o nosso clã sempre soube guardar as emoções.
Alguns de entre nós, por necessidade ou simples devaneio, praticavam há muito o que se chegou a chamar a Arte da Ilusão Aplicada. Consistia mais ou menos nisto: um grupo de iniciados juntava-se na clareira sul do vale, sentava-se na relva de modo a que os corpos se tocassem, fechavam os olhos durante o tempo equivalente a uma corrida entre as duas fragas redondas, e pensavam numa terra sem limites, abundante de carne fresca e água cristalina. Então, e por uma ordem previamente definida, abriam os olhos; quando o último o fizesse, deviam voltar-se todos de uma só vez para a entrada do desfiladeiro. É verdade que por vezes todos conseguiam ver, não raro imerso num leve neblina, a figura do nosso salvador. Era em tudo igual a cada um de nós, mas de semblante brilhante, onde era impossível não ficar prisioneiro do poderoso e tranquilo olhar. A visão não demorava mais do que breves instantes, mas era suficiente para passarmos os próximos dias, por vezes o tempo de uma lua, acreditando com firmeza sermos livres e o nosso vale agreste uma terra de prazeres indizíveis, de onde não se saía por ser ali o paraíso e onde ninguém chegava por ninguém mais conhecer a sua existência. Quando a monotonia dos dias, as agruras da luta diária para comermos e saciarmos a sede nos pregava de novo à realidade, os real fazedores de sonhos, ou os sonhadores do real fazível, como gostavam de se chamar, voltavam a reunir-se e tudo recomeçava.
Mas naquela tarde em que ele apareceu não houvera reunião dos sonhadores, não constava da memória de alguém que alguma vez a ilusão tivesse acontecido dias depois da última reunião, nem havia qualquer espécie de neblina; a tarde era, aliás, de uma transparência invulgar। Ainda assim, demorou algum tempo para que quem o viu corresse ao seu encontro, prova provada de que, quando se acredita na ilusão, é à realidade que compete provar a existência.Ele surgiu no cimo da encosta junto às fragas pontiagudas, dizem que ficou longos instantes a olhar o vale com uma imobilidade de ferro e só então começou a descer. Os passos eram confiantes, embora possuídos de extraordinária lentidão. Ninguém se lembra de quem foi o primeiro a mover-se, mas subitamente correu ao seu encontro uma gigantesca nuvem de pó. Instantes depois todos sabíamos que o terrível Cérbero morrera, alguém gritou que chegara a liberdade, alguém gritou vivas e lançou uivos de felicidade, alguém gritou que o nosso salvador estava ferido e acabava de desfalecer. Foi comprido e silencioso o cortejo que ao cair da noite desceu ao centro do vale, levando nas costas o corpo inanimado daquele a quem ainda desconhecíamos o nome. Nas horas seguintes ardeu em delírios vários, neles falava de lugares distantes e da luta titânica que travara. Pela manhã, um grupo de corajosos aventurou-se a entrar no desfiladeiro. Testemunharam a morte da besta, os vestígios sangrentos da luta e a imensidão da planície à frente dos olhos. Um deles decidiu não voltar e aventurar-se sem demora no mundo desconhecido.

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sexta-feira, 24 de julho de 2009

O Regresso do Minotauro




Ninguém sabe ao certo o que se está a passar connosco. Sei que até os adultos têm medo. Não é de admirar, em cada dia que passa desaparece mais um. Já aconteceu em todas as casas. É por isso que as ruas estão desertas. Ninguém se atreve a sair, mas acredito que isso não serve de coisa alguma. Primeiro foram os homens, agora começa a acontecer com as mulheres. A minha avó rezava quando lhe dei as boas noites, antes de me deitar. Ao amanhecer o seu quarto estava vazio, as roupas dobradas na cadeira e os óculos em cima da mesinha de cabeceira. Há quatro ou cinco dias que se ouve ao entardecer um estranho ruído – parece o lamento de um animal ferido. A minha mãe diz que lhe lembra um touro. Não sei, mas a verdade é que, gemido ou lamento, o seu som é cada vez mais forte.
Lembro-me vezes sem conta das palavras do senhor padre na missa da última Páscoa. No meio de tantas coisas que não entendi recordo que falou da maldade dos homens, dos vícios e da perfídia e do dever de todos temermos a cólera do Senhor. Sei que repetiu estas palavras em todas as casas que visitou com a cruz de Cristo, porque eu era um dos rapazes do compasso. Não sei se já estaremos a pagar os nossos pecados ou se é outra coisa qualquer que está a acontecer. Às vezes parece-me que até o tempo é outro: o sol mais brilhante e o céu mais azul. Ou talvez seja só o medo que transforma o nosso olhar.
Se é verdade que nós vivemos no meio das montanhas, a centenas de quilómetros do mar, também é verdade que a maresia e os grasnidos das gaivotas chegaram até aqui numa manhã de Maio e nunca mais desapareceram। Houve quem dissesse, no início, que só podia ser do vento e do ar que se fizera vazio com as mudanças no clima que as televisões falavam. Claro que poucos acreditaram nisso, e com o passar das semanas esquecemos o som e o cheiro, como deve acontecer com quem vive junto do mar.Mas não posso deixar de acreditar que tudo começou naquela manhã de Junho.

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A Pedra

Não saio desta pedra de onde vejo as duas amoreiras, os plátanos, toda a praça.
Não saio desta pedra onde sempre me sentei, encostado à parede da casa onde sempre vivi. Eu disse-lhes que as casas ficavam sempre connosco, envelheciam connosco, como esta pedra de onde vejo toda a praça e toda a praça me vê.
Disse a todos que não voltaria a sair desta pedra onde me sento de manhã à noite, quer venha agora o sol ou a chuva, o vento do norte ou até a noite escura. Disse-lhes: eu faço parte desta praça, sou dos plátanos e das amoreiras que eles protegem como duas filhas; eu, esta pedra onde me sento e a casa que comigo envelheceu.
Um dia tiraram-me à força desta pedra e levaram-me para a prisão das paredes brancas. Resisti como pude, mil vezes afirmei e outras mil gritei que queria voltar a esta pedra onde me sento, de onde vejo toda a praça e toda a praça me vê, que o digam os plátanos, as amoreiras e as pessoas que a atravessam; que o digam os pássaros.
Diziam que eu tinha de respirar o ar que tiravam de uma garrafa, e que morreria se me libertassem. Eu disse-lhes que morrer todos havemos um dia, é um direito que nenhum governo nos pode tirar, e o dia e a pedra onde cada um morre só a ele cabe decidir. Fui mais forte que os guardas e gritei-lhes: eu quero morrer naquela pedra para que os plátanos me vejam. É um direito que eles têm e para eles será o meu último olhar.
O grande carro das luzes vermelhas deixou-me na pedra onde me sento. Os plátanos sorriram-me e disseram bye bye ao carro que se afastava empurrado pelo vento. Os pássaros aproximaram-se em grandes voos circulares; por vezes descem num voo picado sobre o lugar onde me sento.
Sei que está vazia a casa por detrás de mim. Os filhos longe, nas cidades distantes que existem no mundo para além da praça onde pertenço. Consigo ver deste lugar a forma dos seus pés descalços gravados na terra. Afagam-nas os ventos de Outono, a neve e as chuvas de Inverno. E consigo ouvir as palavras que gritavam entre os plátanos, as gargalhadas sonoras, os primeiros gritos de dor. A praça mostra-me tudo isso se eu não sair da pedra onde me sento.
Na prisão das paredes brancas os homens disseram que era curto o meu tempo, para breve a minha morte se os seus muros abandonasse. Desconhecem que nesta pedra onde me sento existe todo o tempo que me define.
Olhem os pássaros que voam nos seus voos circulares, a luz de bronze nos troncos dos plátanos, o murmúrio das folhas, a mania que têm de brincar a esta hora com a brisa que chega de nascente; olhem o cão deliciado com o perfume da terra e como corre inebriado com as palavras que a terra lhe segredou; olhem como a bola foge das mãos daquela criança para lhe mostrar como é infinita a largura desta praça. Olhem e digam-me como pode ser curto o meu tempo se da pedra onde me sento consigo ver esta eternidade.
Por isso não me voltem a pedir que me levante da pedra onde me sento, se daqui até já o meu corpo vejo, imóvel e sereno a contemplar a praça infinita.
A bola que fugia das mãos da criança imobilizou-se; e o cão no seu salto inebriante; e os pássaros no seu voo circular; imobilizaram-se todos os sons.Como podia ser curto o meu tempo se daquela pedra lá em baixo, distante, eu ouvia o murmúrio eterno dos plátanos.

O Vendedor de Ilusões

Trabalhava sozinho desde que o seu mestre morrera, havia mais de quatro anos. Acompanhara-o desde criança pelos caminhos sem fim, perseguindo as feiras e as romarias em honra de um santo qualquer e dele herdara todos os truques que conhecia, a destreza com os dedos das mãos, o olhar enigmático com que devia enfrentar a multidão e o segredo de oferecer no instante certo a visão daquilo que os outros, sem o saberem, desejavam ver. O acaso, ou a fortuna, havia arranjado o encontro numa manhã quente de Agosto, a escassos metros da ponte velha de Vila Rosa. O homem mergulhara a tempo no rio e trouxera-o para a margem, inanimado. A vida que o homem lhe restituiu, decidiu entregar-lha nesse instante na forma de uma servidão sem limites. Nessa tarde assistiu deslumbrado ao seu espectáculo na praça central, nessa noite não voltou ao acampamento e da água do rio nunca mais se aproximou.
Nos primeiros meses limitara-se a ajudar o homem na montagem e desmontagem da banca, lavava os tachos onde cozinhavam, fazia com diligência os demais serviços que ele lhe ordenava. Enquanto o homem actuava, ele confundia-se com os espectadores para ver com os olhos deles as ilusões que saíam das mãos do mágico. Gostava daquela posição desprevenida, onde a surpresa acontecia facilmente; por vezes tirava os olhos das mãos do homem para observar os rostos da assistência; apreciava os instantes em que seguiam com avidez os dedos do mágico e os rostos concentrados ignoravam tudo o que se passava à sua volta; deleitava-se com o espanto que todos derramavam quando o truque se consumava e a magia acontecia. Foi num desses instantes que o assaltou a certeza de o homem ter um estranho poder nas suas mãos – uma brisa que os seus dedos derramavam e que refrescava o espírito dos que assistiam; era sem dúvida esse efeito que os impedia de verem que tudo não passava de aparência. Apesar de estar sempre perto do homem quando ele ensaiava, durante muito tempo manteve firme o desejo de não querer saber como tudo acontecia por detrás do pano negro com luas e estrelas pintadas a ouro, ou o que fazia uma mão quando a outra se erguia no ar e mexia os dedos para mostrar que nada possuía. Parecia-lhe ser pecado conhecer os mecanismos secretos que faziam nascer a magia, algo como partir uma peça valiosa ou deixar de acreditar em Deus.
Mas chegou o dia em que o homem o chamou, lhe disse que se sentasse à sua frente e olhasse com atenção aquilo que as suas mãos faziam. Dos seus dedos vazios nasceu mais uma vez a moeda de vinte cêntimos e logo de seguida o lenço de seda branco que ainda nessa manhã ele pusera a secar transformou-se de novo numa rosa reluzente. Porque lhe fazia aquilo, perguntou-lhe, mas o homem não respondeu porque teve de se afastar para tossir durante muito tempo a tosse que há muitas noites o consumia. Quando chegou, fez de novo o truque da moeda e da flor; no fim ordenou-lhe que não fixasse nenhuma das suas mãos, que olhasse para o corpo todo que tinha à sua frente como se tivesse um ponto longínquo a prender-lhe o olhar; só assim veria tudo, porque a magia fazia parte do mundo e ao mundo se ligava com uma teia de milhares e invisíveis fios. O rapaz de novo lhe perguntou porque lhe ensinava aquelas coisas, e o homem respondeu que era altura de ele aprender; depois levantou-se e perdeu-se nas sombras do bosque; de quando em quando o rapaz ouvia-o tossir, sempre que o vento corria de feição.
Em poucos meses aprendera a fazer sair o coelho da cartola vazia, a destapar o polegar ileso das afiadas agulhas com o que o espetara, a transformar um simples lenço branco numa longa corda de lenços coloridos, a cobrir de invisibilidade uma moeda de vinte cêntimos, a transformá-la numa nota de cinco euros, a criar das cinzas do papel uma nota ilesa, a unir dois anéis de metal prateado e de novo separá-los, a descobrir no meio do baralho de cartas a carta que só ele não vira, a fazer nascer do lenço branco a flor que nessa manhã haveria de recolher na berma da estrada. O mestre seguia-o com olhar atento, corrigia-o vezes em fim, gritava-lhe quando o erro se repetia, por vezes elogiava-lhe o talento. Ele esforçava-se até à exaustão, até os pulsos perderem a força e não sentir as articulações dos dedos, até a cabeça estar prestes a explodir. Faltava sempre um pormenor, um movimento executado fora do tempo, a força insuficiente num dos dedos, um raio de sol que o distraía. À noite lutava numa guerra sem tréguas, onde se digladiava o sono que o cansaço trazia com o sentimento de perda irreparável que era a verdade nua e crua despida das peças da ilusão. Por vezes sonhava que fugia aos primeiros raios da aurora; corria pelos campos fora e esquecia um pouco do que aprendera em cada passo que dava; quando parava de cansaço, voltava a ser o espectador inocente que conseguia abrir os olhos de espanto perante as mãos vazias do mágico.
Chegara entretanto o Outono e os ventos gelados do cair do dia. Numa noite igual a tantas outras, o mestre pediu-lhe que partilhasse a fogueira ao seu lado. Caía a primeira geada do ano. A tosse não o deixava falar com clareza, mas cada frase parecia uma despedida e uma sentença para os dias futuros. Quando, mais tarde, o rapaz lutava com a insónia, ainda ecoavam no seu espírito as palavras do homem a dizerem que a magia era como a religião e que os homens precisariam sempre da ilusão porque só com ela conseguiriam compreender o mundo. Enterrou o mestre ao fim da manhã, num socalco da falésia onde o vento inclinava o tronco de uma nogueira. Nessa tarde chegou pela primeira vez sozinho a uma terra desconhecida. Na feira do dia seguinte enfrentou sozinho a multidão.

Foi no Inverno do quarto ano que os alicerces do mundo que conhecia começaram a desabar. Tudo terminaria na primeira manhã de Abril.

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A Página em Branco


Um estranho silêncio caiu no vale quando o conto acabou. Se é verdade que todos sabiam que aquele instante um dia haveria de chegar, também é verdade que guardavam esse pensamento no lugar mais secreto do espírito, algures entre os medos e os sonhos impossíveis, e raramente o visitavam. Admirou-os que a luz continuasse com a sua tonalidade de sempre quando o padre disse as últimas palavras do funeral. Houve quem visse no verde dos ulmeiros um certo escurecimento e um tom de cobre nas nuvens negras que há muito se aproximavam de oeste, mas eram coisas sem importância perante a certeza de o mundo continuar a existir depois da última frase do conto. Estavam todos na encosta sobranceira às casas distantes. No conto, era ali o cemitério e ali fora a enterrar o conde de Paranhos.
Durante alguns instantes olharam atónitos à sua volta, observaram as próprias mãos, faziam com a ponta dos sapatos riscos profundos na terra, tocavam as pedras das campas e voltavam a olhar as casas e as montanhas que circundavam o vale. Quando começaram a descer a encosta ainda ninguém dissera uma só palavra. Caminhavam devagar, de quando em quando olhavam uns para os outros, faziam-no com olhares breves, como se não soubessem o que queriam ver, ou necessitassem de entender o que viam. O ruído dos passos elevou-se no ar quando as doze personagens começaram a pisar as pedras da única rua da aldeia, a princípio com o ritmo lento com que tinham descido a encosta, até um ou outro se ir imobilizando e todos parecerem, por fim, estátuas bizarras vestidas de negro a quem o vento fustigava os cabelos, os vestidos e as abas dos casacos. Ficaram assim durante alguns minutos, e se não fossem os pássaros que cruzavam o céu e o cão que por duas vezes atravessou a rua dir-se-ia que a morte lhes tinha chegado disfarçada de vento glacial e em breve todos tombariam feitos em pedaços na terra.
Foi o homem que seguira à frente que falou: tirou o relógio do bolso do colete, olhou-o demoradamente e disse– Faltam cinco minutos para as sete.

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